As Polícias Militares (PM) surgiram durante a ditadura militar e continuam sendo instituições atuantes na segurança pública brasileira, encarregadas de exercer o policiamento ostensivo, ou a vigilância das ruas. A incorporação das PM na arquitetura da segurança pública brasileira foi acompanhada pelo crescimento do fenômeno da letalidade policial. Em diferentes estudos e pesquisas sobre a letalidade policial, na cidade de São Paulo, apresenta-se que em 1960 foi encontrado um único óbito cometido oficialmente pelas forças policiais. Em 1965, foram encontradas duas mortes. Na década de 1970, quando a Polícia Militar passou a patrulhar as ruas da cidade, 28 pessoas foram mortas pelas polícias. O número passou a ser cada vez maior nos anos seguintes. Em 1980, os registros apontavam 280 pessoas mortas pela polícia na capital. No ano seguinte, 300 pessoas foram mortas pela polícia. Em 1985, o total alcançou 583 casos. Sete anos depois, em 1992, as mortes cometidas pela polícia haviam ultrapassado as mil ocorrências. Este quadro se intensificou nos anos seguintes, assumindo proporções ainda maiores no ano de 2015, quando 3.345 pessoas foram vitimadas por intervenções “legais” em todo o país, situação que segue em crescimento constante, visto que em 2021 a quantidade de pessoas mortas pela polícia saltou para 6.429.
Apesar da prática dos homicídios como forma de “limpeza social” tangenciar as organizações policiais desde as décadas de 1960 e 1970, naquele momento havia a necessidade de lidar com as mortes cometidas por policiais no âmbito das atividades extraoficiais. A morte em decorrência de intervenção policial, como uma ação passível de ser registrada pelas instituições policiais, passa a ser parte do cotidiano policial apenas nos anos de 1970, com a entrada da Polícia Militar no policiamento ostensivo.
Em 1964, o golpe militar interrompeu a democracia brasileira e estabeleceu um regime autoritário, conduzido por militares e civis, que iria se estender até 1988, executado por uma coligação de forças e interesses, composta pelo grande empresariado brasileiro, por latifundiários – proprietários de grandes parcelas de terras, e por empresas estrangeiras instaladas no país, sobretudo aquelas ligadas ao setor automobilístico. A conspiração contou com a participação de setores das Forças Armadas, aos quais aderiu a maioria da oficialidade, diante da passividade da liderança militar legalista, ou aquela que era contra um golpe de força contra o presidente eleito.
Com o regime militar, houve a ampliação do poder das Forças Armadas, justificada a partir da noção de inimigo interno, inscrita na Doutrina de Segurança Nacional, desenvolvida pela Escola Superior de Guerra do Exército brasileiro e institucionalizada pela Lei de Segurança Nacional de 1967.
Os tempos em que o poder estava na mão dos militares foram difíceis, com o país sendo controlado por meio da censura e da repressão. A violência dos agentes estatais atinge o ápice com o advento do AI nº 5, assim como o medo e a prática da tortura. A partir do AI-5, instalou-se uma ditadura mais severa e os militares passaram a assassinar sistematicamente os que se opunham ao seu governo.
Naquele tempo, qualquer contestação política moderada, um protesto por liberdades democráticas, a manifestação de uma opinião crítica ao regime ou ao sistema capitalista, poderiam ser interpretadas como “subversão”, dado o poder arbitrário e a amplitude da Lei de Segurança Nacional. O conceito de “crime político” equivalia ao conceito de crime de guerra, ancorado na tradição dos crimes de “lesa-pátria”, isto é, contra a pátria. Neste contexto, durante a ditadura militar, da mesma forma que na Era Vargas, o aparato policial violento foi amplamente utilizado para conter a oposição política.
O DOI-CODI e a repressão política
Após a decretação do AI-5, no final de 1968, alguns órgãos foram criados com o objetivo de garantir a ordem desejada pelo regime militar. Um dos mais conhecidos é o DOI-CODI, cujos prédios foram o cenário da maioria dos assassinatos e torturas dos opositores do sistema no período.
O Destacamento de Operações de Informações (DOI) tornou-se a instituição responsável pela inteligência e repressão do governo, estando subordinado ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI). A ação conjunta destes dois órgãos gerou a temida instituição de repressão da ditadura militar conhecida como DOI-CODI, que reunia agentes policiais das três forças (policiais militares estaduais, polícias civis e Polícia Federal), todas sob um mesmo comando. As polícias militares e as polícias civis, naquele período, atuaram tanto na manutenção da “ordem”, do regime militar segundo as ideologias da Doutrina de Segurança Nacional, como realizavam também o controle do crime comum.
No período da ditadura militar, a PM ficou responsável tanto pela repressão política, relacionada ao regime ditatorial, como pela repressão da criminalidade urbana a partir da vigilância das ruas. A entrada da PM no policiamento ostensivo nos anos de 1970 marcou a segurança pública brasileira, pois coincidiu com o início do crescimento da letalidade policial.
Os DOI-CODI ficaram amplamente conhecidos como centros de tortura e repressão. Os dois maiores estabelecimentos do DOI-CODI localizavam-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. O prédio de São Paulo deu lugar ao 36º Distrito Policial, na rua Tutóia. Já no Rio de Janeiro era localizado na rua Barão de Mesquita nº425, na Barra da Tijuca, mesmo endereço do quartel do 1º Batalhão de Polícia do Exército.
Polícia Militar: uma invenção da ditadura
Uma das principais marcas deixadas pela ditadura militar é o policiamento ostensivo militarizado, feito por policiais militares altamente armados, que todos os dias realizam a vigia das ruas para coibir e reprimir crimes.
Embora antes de 1964, a Força Pública também fosse uma polícia militarizada, ela era treinada para situações críticas de defesa da ordem pública. No dia a dia, essa polícia tinha pouco contato com a população. Cumpria um papel secundário de policiamento do interior e das áreas mais próximas aos quartéis na capital. Ao contrário, a Polícia Militar está todos os dias em contato direto com a população. A militarização do policiamento ostensivo foi iniciada na época da ditadura militar, trazendo consequências que se perpetuam, uma vez que a Constituição de 1988 não alterou essa proposição e nem criou um policiamento ostensivo civil. A vigilância das ruas permanece nas mãos de uma polícia militarizada, treinada para “eliminar” o inimigo, e não para promover a segurança pública.
Nos anos de 1970, a violência urbana nas grandes cidades passa a ser marcada pelo crescente número de crimes patrimoniais e contra a vida. É neste mesmo período que a Polícia Militar também vai começar a atuar de maneira mais violenta nas periferias das cidades e também contra dissidentes políticos. Desde sua criação, a violência policial é vista como um instrumento legítimo de controle do crime. Assim, o medo e a construção social da imagem do “bandido” como alguém que merece ser assassinado faz com que pessoas tolerem os homicídios cometidos por policiais, desde que as vítimas sejam supostos “bandidos”.