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Recomendações da CNV para a transformação das polícias

Recomendações da CNV para a transformação das polícias

Mesmo com o processo de redemocratização ocorrido na década de 1980 no Brasil, pouca coisa mudou na maneira como as polícias atuam. Todos os dias são registradas mortes cometidas por policiais, sob a alegação dos governos de que tais mortes são resultado de um legítimo confronto entre bandidos e agentes públicos. Entretanto, é preciso investigar e compreender o que está por trás de tantas mortes descritas como “legítimas” pelas polícias. É nesse sentido que algumas das recomendações elaboradas pela CNV, em 2014, dizem respeito, tanto aos crimes cometidos pelas forças policiais da ditadura, quanto aqueles que continuam sendo cometidos por policiais cotidianamente.

Dentre as recomendações, sobressaem aquelas em que se exige mais fiscalização, punição e a responsabilização dos agentes estatais que cometem crimes no exercício de sua função. Para efetivá-las, o poder público deve considerar que toda e qualquer violência cometida por agentes do estado deve ser apurada e responsabilizada. Igualmente importantes, são as recomendações que apontam para a necessidade de eliminação das figuras jurídicas que dão amparo legal a estas mortes, como é o auto de resistência à prisão, ou as que sustentam a  necessidade de uma atuação mais ativa dos órgãos de controle da polícia.

Afinal, a impunidade sobre estas mortes acaba perpetuando a existência de uma polícia violenta, arbitrária e letal, que tem suas origens na época da ditadura militar. Isso significa, que em grande medida, a impunidade de hoje pode ser vista como uma consequência da falta de responsabilização dos crimes cometidos por policias, Forças Armadas e agentes do Estado na época da ditadura. Crimes estes que foram auto anistiados com a Lei da Anistia, de 1979, a qual não foi revista pelo Estado.

Na recomendação de nº 2, feita no relatório da CNV, lê-se a seguinte exigência:

“Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei nº 6683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais.”

Tal recomendação direciona-se especificamente aos crimes ocorridos no período de 1961 a 1979, e indica ao Estado brasileiro que os agentes públicos que assassinaram, perseguiram e torturaram pessoas nesse período devem ser responsabilizados, partindo-se do entendimento de que tais crimes não podem ser anistiados, como o foram e seguem sendo – por conta da Lei de Anistia, que tem garantido impunidade aos crimes que foram, na maioria dos casos, cometidos por integrantes das Forças Armadas ou da Polícia Militar.

Apesar da recomendação se referir basicamente aos crimes praticados no período de 1961 a 1979, sabe-se que muitos dos crimes cometidos pelo aparato policial-militar, de 1979 em diante, não são tratados como tal. Da mesma forma que a recomendação propõe que seja superada a impunidade aos crimes daquele período, é preciso entender como superar a impunidade aos crimes praticados por agentes públicos que seguiram ocorrendo após o fim da ditadura e que ocorrem até hoje.

Para que isso ocorra, é necessário, primeiramente, mudar a classificação penal que caracteriza esses crimes. Tal proposta tem sido alvo de intenso debate no campo da segurança pública brasileira. No meio policial, tradicionalmente, esses crimes eram classificados como “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”. Contudo, essas classificações têm sido sistematicamente criticadas, pois supõem “exclusão de ilicitude”, ou seja, excluem a possibilidade de que ao praticar os homicídios assim identificados, os policiais envolvidos  tenham agido contrariamente a lei. Isso porque,  segundo o Código Penal, não existe crime se o agente o pratica em estrito cumprimento de dever legal.

Partindo desse entendimento, a CNV elaborou a recomendação n° 24, de suma importância para uma efetiva mudança na atuação letal das polícias no país, na qual se pede a “alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão.”

Em 2016, o Conselho Superior de Polícia e o Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil baniram o uso da expressão “autos de resistência”. Além disso, em alguns estudos sobre o tema passou-se a adotar o termo “letalidade policial”, com o objetivo de deixar claro do que se tratavam realmente os homicídios e demonstrar a condição letal da ação policial. Como forma de evidenciar o homicídio negligenciado pelos “malabarismos” verbais para nomear muitos dos crimes cometidos por seus efetivos, passou-se a adotar o termo “morte em decorrência de intervenção policial”, ou ainda, “homicídio decorrente de oposição à ação policial”. Há uma evidente limitação desta última designação, dado que com ela também se sugere que a causa da morte em questão é a resistência ou confronto à ação policial. Ocorre da mesma forma com os termos “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”, pelos quais se indica uma licitude na ação da polícia que, ao matar, estava cumprindo a lei.

Outra recomendação do relatório da CNV indica ser necessária a desmilitarização das polícias militares estaduais, trazendo à tona uma questão que é central nas discussões de todas as organizações que lutam contra a violência do Estado. O tema está em pauta desde a votação da Constituição Federal de 1988, e em todo esse período foram poucas as alterações na arquitetura institucional relativa à segurança pública. Dentre as permanências, destaca-se a militarização do policiamento ostensivo, o que faz com que suas políticas de segurança assumam alicerces de estratégias de guerra. Assim, medidas de exceção, como a letalidade policial e o confronto letal entre população e policiais, seriam justificáveis.

Além disso,  há inúmeros casos de violências cometidas por policiais militares durante ações de repressão às manifestações públicas. São casos graves, que vêm se tornando recorrentes, como os que ocorreram durante as chamadas manifestações de junho de 2013  – e também nos anos seguintes – nos quais policiais militares feriram gravemente manifestantes e jornalistas que participavam dos atos políticos.

A incompatibilidade entre as práticas de extrema violência  e os princípios e valores democráticos é vista como uma das consequências da militarização da polícia brasileira. Assim, a recomendação de desmilitarização da Polícia Militar, feita pela CNV, pode ser entendida como uma proposta de modificação do texto Constitucional, que em sua versão atual, prevê a existência de uma Polícia Militar atuando como força auxiliar do Exército.

Um dos benefícios trazidos pela desmilitarização da PM seria o fim da doutrina de combate ao inimigo, que pauta o policiamento ostensivo. A desmilitarização da polícia não levaria ao fim do policiamento fardado e armado, apenas determinaria que tal policiamento deixaria de estar submetido a doutrinas militares, passando a ser executado por uma polícia civil.

Portanto, a desmilitarização levaria a uma mudança no treinamento e no modo de executar o policiamento ostensivo desempenhado pela PM. Em consequência, a polícia não poderá mais ver o cidadão como um adversário ou um inimigo a ser eliminado. Essa compreensão é manifestada pelas recomendações 5 e 6, do relatório da CNV, as quais apontam para a necessidade da:

“Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos.
Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos.”

Ao pleitear essas modificações, o relatório da CNV, aponta para a reforma na formação, no ingresso e na avaliação das Forças Armadas e das polícias, e sugere a implementação dos valores democráticos para os quais são fundamentais a defesa e promoção dos Direitos Humanos. Para se entender como as práticas policiais da ditadura continuaram a existir no contexto democrático, minando a possibilidade de uma polícia cidadã, defensora dos direitos humanos, é preciso compreender a história e as modificações pelas quais passaram as polícias.

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