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Privação de liberdade

Se somarmos a quantidade de pessoas privadas de liberdade com o contingente de familiares que visitam pessoas no sistema prisional, qual seria o tamanho da população diretamente atingida pela privação de liberdade no Brasil?  Trata-se de uma política de Estado com enorme impacto na sociedade. Ademais, entendendo que o fenômeno da privação de liberdade no país ganhou contornos de violência institucional, na forma de prisões arbitrárias e tortura, se faz importante não apartar a realidade dos presídios da violência de Estado cometida em outras circunstâncias.

Da mesma forma que as execuções sumárias, desaparecimentos forçados e demais violações de direitos humanos no Brasil, a prisão arbitrária e a tortura também recaem de maneira acentuada sobre a população negra, pobre e periférica das grandes cidades brasileiras. Desse modo, o perfil da população prisional no país é, em sua maioria, jovem (43,1%) e negra (68,2%). O recorte racial é um elemento fundamental para compreender a política de Estado de privação de liberdade, derrubando o mito da democracia racial e alertando para a pertinência de se pensar o sistema criminal a partir do racismo institucionalizado.

Outra característica fundamental da política criminal brasileira, que contribuiu para aumentar a população prisional a partir dos anos 1990 e que reforça a discriminação ao selecionar quem será privado de liberdade, se dá a partir da intensificação da guerra às drogas no país. Em 2014, ao menos 27% da população prisional brasileira havia sido condenada pelo crime de tráfico de drogas, sendo esse o tipo penal com maior incidência. Em 2005, antes da Lei de Drogas de 2006, esse percentual era de 9%. Os crimes contra a vida, que poderiam se pensar como prioridade para a política criminal, estão na quarta posição (10%), atrás ainda dos crimes de roubo e furto. Pesquisas indicam que os tribunais tendem a encarcerar, preferencialmente pelo crime de tráfico de drogas, pessoas que não fazem parte de organizações criminosas e que não possuem antecedentes criminais, com perfil de pequenos varejistas do mercado de entorpecentes.

Na suposta tentativa de combater as drogas, oferecendo o controle penal como solução para problemas sociais, o Brasil tornou seus presídios uma extensão das favelas e periferias, onde facções, milícias, comandos e agentes do Estado negociam mediante o uso da força, sobre assuntos de dentro e fora dos estabelecimentos prisionais. A massa de presos está disciplinada em um regime violento, tornando-se compulsoriamente soldados/funcionários do crime, na medida em que adentram as unidades prisionais e são, necessariamente, depositados nas galerias de determinada facção. Com essas contradições, o que acontece dentro das unidades prisionais se tornou determinante para a estabilidade na área da segurança pública das grandes cidades brasileiras. Quem sofre, mais uma vez, é a parte mais fraca: aqueles que já não podem sequer se rebelar em razão da qualidade da comida, da falta de água potável, da privação de banhos de sol, da vida ociosa e tantas outras violências impostas às pessoas privadas de liberdade.

É em meio a esse cenário que as prisões arbitrárias, torturas e massacres se tornaram constantes no sistema prisional, socioeducativo e outros estabelecimentos de privação de liberdade no Brasil. O mais conhecido deles é o Massacre do Carandiru, em 1992, quando a polícia militar do Estado de São Paulo assassinou 111 detentos durante uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo. Julgados em 2013 e 2014, ao menos 74 policiais militares foram condenados em tribunais do júri. Porém, em 2016 todos foram absolvidos em segunda instância, em uma sentença que considerou “legítima defesa” a ação de extermínio da polícia militar.

Considerado um dos mais importantes presídios da capital paulista, cidade mais populosa do país, em 1992, o Carandiru padecia de problemas endêmicos ao sistema prisional, como a superlotação, a alta quantidade de presos provisórios, a violência institucional e as condições degradantes em que vivem os internos. Dois filmes retrataram a vida no Carandiru, ambos de 2003. O primeiro, de nome “Carandiru”, é uma ficção baseada no trabalho de Dráuzio Varella e no convívio entre os presos da unidade prisional. O segundo, chamado “O prisioneiro da grade de ferro (Autorretratos)”, é um documentário sobre a vida dentro do presídio, pouco tempo antes da sua demolição.

A dificuldade do Brasil em superar o flagelo da tortura é demonstrada pela validação da Lei de Anistia, de 1979, aprovada durante o regime militar, já no período conhecido como de redemocratização. A interpretação dada à Lei inviabiliza a responsabilização daqueles que praticaram tortura durante a ditadura. Embora tal interpretação tenha sido rechaçada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que considerou a lei uma autoanistia na sentença do Caso Gomes Lund e outros versus Brasil em 2010 (Caso Guerrilha do Araguaia), o próprio Supremo Tribunal Federal corroborou sua validade para anistiar responsáveis por crimes de lesa-humanidade. Com isso, o Brasil é o único país da América Latina que mantém em vigor uma auto anistia aprovada por militares durante um regime de exceção. Com duas sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de medidas cautelares em âmbito internacional relacionadas aos estabelecimentos prisionais no país, o Brasil demonstra não conseguir dar um passo decisivo no combate a este flagelo histórico.

O Brasil possui um sistema prisional em colapso, em um quadro de superlotação, tensionamento interno e em meio a uma crise político-financeira que dificulta ainda mais que se priorize o melhor tratamento dos presos, de jovens em conflito com a lei, de pessoas com transtornos mentais, de dependentes químicos e outros que habitam os diversos cárceres do país.

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