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Obstáculos ao trabalho da perícia criminal

Obstáculos ao trabalho da perícia criminal

Manter ou abandonar uma linha de investigação policial depende das análises e laudos produzidos pela perícia criminal. Um suspeito pode não vir a ser investigado após a realização de exames papiloscópicos que confirmem a incompatibilidade entre as impressões digitais dele com aquelas que foram encontradas na perícia do local de um crime. Ou um evento dado como acidente de carro pode ser transformado em suspeita de homicídio se a perícia localizar rastros e evidências que atestem a participação de pessoas na adulteração dos freios do veículo.

Apesar da incontestável importância que tem para um processo investigativo, a perícia criminal enfrenta desafios que prejudicam significativamente a realização do seu trabalho. Serão abordados três deles: a) Estrutura organizacional; b) Ausência de recursos técnicos e financeiros; c) Cultura policial hegemônica no país. 

a. Estrutura organizacional e autonomia da perícia 

Por muitos anos a perícia oficial criminal dos Estados e do Distrito Federal esteve subordinada às Polícias Civil ou Federal. Este cenário vem mudando, mas em alguns Estados ainda é o delegado chefe da Polícia Civil o responsável último pela perícia criminal. A permanência da perícia dentro da estrutura administrativa das polícias favorece a interferência de agentes externos ao quadro da perícia oficial, como delegados e investigadores que, intencionalmente ou não, contaminam o trabalho pericial com o objetivo de fazer com que sejam produzidas provas capazes de confirmar uma determinada hipótese investigativa.

Tal problema se torna ainda mais sensível nos casos de crimes cometidos por agentes do Estado, principalmente por policiais. No conteúdo do portal Memórias da Ditadura é possível colher informações sobre como a Polícia Militar brasileira é uma das mais violentas do mundo, responsável pelos altos índices de mortalidade de jovens negros moradores de áreas periféricas das cidades. Raramente os homicídios cometidos por policiais são devidamente investigados. Porém, quando ocorre, há enorme pressão política e institucional sobre  a atuação da perícia e acaba por prejudicar a imparcialidade das análises, colaborando com a impunidade e com a perpetuação da violência do Estado.

Esta situação é resultado da compreensão do grupo que elaborou a Constituição Federal de 1988. Em seu artigo 144,  não prevê a perícia criminal na lista dos órgãos responsáveis pela Segurança Pública no país, que fica sob responsabilidade das Polícias Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Civis, Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares.

Em 2009, houve a regulamentação da perícia criminal por meio da Lei nº 12.030. Porém, não estabelecia claramente a estrutura de gestão da perícia oficial no Brasil. Em decorrência da falta de normas, couberam aos Estados decidirem sobre o modelo de organização administrativa da perícia criminal, mantendo-a, em vários casos, vinculada à Polícia Civil.

Graças à pressão política de diversas entidades representativas de peritos, a situação institucional vem se modificando nos últimos tempos. Entre elas estão a Associação dos Peritos Criminais Federais (APCF) e Associação Brasileira de Criminalística (ABC), que defendem a desvinculação dos institutos de criminalística e de medicina legal da estrutura das Polícias Civil e Federal como forma de garantir maior confiabilidade aos exames e laudos periciais.

Atualmente, 19 Estados brasileiros mantêm a perícia criminal separada da Polícia Civil, permanecendo, porém, ligada à Secretaria de Segurança Pública. São eles: Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe, Tocantins e São Paulo.

A Polícia Técnico-Científica do Estado de São Paulo, desde 1998, se encontra subordinada diretamente à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Antes disso, tanto o Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, criado em 1886, quanto o Instituto de Criminalística, fundado em 1924, estavam subordinados à Polícia Civil.

b. Recursos financeiros e técnicos 

A natureza da atividade pericial é técnica e científica. Sendo assim, para realizar análises e exames que resultarão no laudo pericial, os profissionais necessitam de recursos financeiros, laboratórios modernos, equipamentos atualizados e formação permanente.

Mas não é esta a realidade de muitas das instituições brasileiras de criminalística. O senso comum da segurança pública, do qual não estão livres os gestores das polícias, muitas vezes entende que investir nesse campo é comprar mais armas e viaturas. Tal compreensão das necessidades institucionais não prioriza a ideia de que a resolução dos crimes, com a devida apuração dos fatos e o apontamento de suspeitos, é parte essencial da política de segurança pública.

Esta mentalidade agrava as condições de atuação da perícia criminal, mantendo-a abaixo dos níveis mínimos exigidos para um trabalho eficaz e independente. Em alguns IMLs, os cadáveres precisam ser encaminhados rapidamente para sepultamento, mesmo que o trabalho investigativo ainda esteja em andamento, devido à falta de geladeiras para o acondicionamento adequado dos corpos. Além disso, má iluminação, computadores defasados, falta de insumos, insuficiência de equipamentos, necrotérios superlotados, carência de recursos humanos são outros problemas enfrentados pela perícia criminal no Brasil.

c. Cultura policial inquisitorial

A presunção de inocência é um princípio fundamental da Constituição brasileira e de qualquer sociedade que se proponha justa e democrática. Ele aparece consumado no artigo 5, inciso LVII, que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ou seja, o Estado somente poderá considerar um indivíduo culpado e aplicar-lhe a pena devida quando todos os recursos processuais, nas várias instâncias do judiciário, forem esgotados. Porém, esse direito fundamental não é observado pela prática investigativa policial, como sustentam e demonstram vários estudiosos da segurança pública no Brasil.

No seu cotidiano, policiais militares, civis e federais determinam seletivamente os culpados amparados em preconceitos raciais, sociais e de gênero. Dados referentes à atuação da Polícia Militar do Estado de São Paulo entre os anos 2009 e 2011, que foram analisados pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos, da Universidade Federal de São Carlos (GEVAC/UFSCar), nos mostram um cenário desafiador: para cada pessoa branca presa em flagrante, 2,5 negros são presos nas mesmas condições, ou seja, a polícia paulista prende 250% mais negros do que brancos. 

O racismo que a história do país cristalizou nas relações sociais também orienta o trabalho policial. Por esta razão, as práticas policiais brasileiras são chamadas de inquisitoriais, na medida em que se assemelham aos métodos da Inquisição: primeiro, presume-se que alguém é culpado para depois serem procuradas as provas necessárias para justificar tal suposição.

Como a perícia criminal de alguns Estados está diretamente subordinada às Polícias Civis ou Federal, em muitos casos, ela é relegada a uma atividade subsidiária e reprodutora dessa prática inquisitorial, sendo convocada como mera formalidade administrativa, necessária apenas para produzir provas que confirmem as hipóteses levantadas pelas investigações. A desqualificação das provas materiais no curso das investigações leva a uma supervalorização dos julgamentos pessoais e subjetivos dos agentes policiais. A arbitrariedade contamina a atividade comum nas investigações policiais, tornando-se tão seletiva quanto as próprias polícias.

A coleta e a análise dos vestígios são frequentemente intensificadas quando se trata de incriminar um suspeito já previamente condenado pelos investigadores. Além disso, alguns estudos, como a pesquisa realizada em 2012 por Klarissa Almeida Platero e Joana Vargas, a respeito da classificação de mortes por parte dos peritos criminais, têm revelado as diferenças na forma de atuação dos órgãos periciais dependendo da região da ocorrência, dos envolvidos e da sua repercussão pública. Um suicídio em um condomínio situado em área nobre de uma capital pode ser melhor periciado do que um homicídio cometido por policiais em uma região periférica. É notável o problema da distribuição de recursos e de investimentos. Nas situações em que um caso precisa de uma resposta urgente pela sua repercussão, a perícia criminal pode receber um aporte emergencial de recursos financeiros ou em equipamentos. Em outros casos, a perícia criminal trabalha precariamente, muitas vezes sem os materiais necessários para a coleta e análise das provas encontradas no local do crime.

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