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Perícia criminal na ditadura brasileira

Perícia criminal na ditadura brasileira

Durante a ditadura brasileira (1964-1985), a perícia funcionou por várias vezes como um instrumento de produção de provas a serviço das autoridades policiais e militares responsáveis pela repressão aos movimentos de resistência ao regime. Pouco importava se as análises científicas das provas materiais dissessem o contrário, o laudo da perícia frequentemente apenas endossava a versão que as autoridades ditatoriais haviam construído para um crime.

Vejamos algumas dessas situações: 

1) O caso de Gélson Reicher e Alex de Paula Xavier Pereira, ambos militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Ambos foram executados por agentes da repressão, em 1972. Porém, a versão da polícia, veiculada pela imprensa à época e mantida pelas Forças Armadas por décadas, dizia se tratar de morte decorrente de resistência à prisão. Os laudos dos exames necroscópicos, do qual um dos signatários é o médico-legista Isaac Abramovitch, corroboram a versão policial, desconsiderando que os cadáveres apresentavam padrões de ferimentos compatíveis com situações de execução – como recentemente apontou a equipe pericial da Comissão Nacional da Verdade (CNV). As feridas na face e no esterno indicam que os atiradores se situavam em plano superior ao que estava posicionado Alex. Além disso, os laudos foram lavrados com os nomes falsos, Emiliano Sessa e João Maria de Freitas, respectivamente, com os quais os dois militantes foram encaminhados para sepultamento como indigentes no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, um dos locais mais utilizados pela repressão paulista para fazer desaparecer os corpos dos que, direta ou indiretamente, incomodavam a ditadura.

Não apenas as perícias médicas corroboravam com as práticas criminosas de execução e desaparecimento. Outro fator no mecanismo de desaparecimento de Gélson e Alex: a 2ª Auditoria Militar recebeu ofício do DOPS/SP comunicando a morte dos militantes e informando que os óbitos foram registrados com aqueles nomes falsos. Contudo, o juiz auditor Nelson da Silva Machado Guimarães, de posse de documentos ilegais e ciente da adulteração das informações, apenas declara a extinção de punibilidade dos agentes da ditadura em relação à Gélson e Alex, sem, contudo, avisar a família, determinar a retificação dos documentos e proceder com o indiciamento dos envolvidos. Perícia, polícia e sistema de justiça trabalharam juntos para que as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura desaparecessem junto com os cadáveres de suas vítimas.

Este caso revela o complexo sistema institucional montado pela ditadura para encobrir as graves violações de direitos humanos perpetradas no período. Por meio de laudos adulterados, a perícia policial se somava a diversos órgãos oficiais, como as Forças Armadas, o Ministério Público, o Serviço Funerário, além de outros, para mascarar execuções sumárias e torturas com documentos que produziam uma aparência de normalidade e oficialidade às ações dos aparelhos repressivos. Tudo parecia estar sendo rigorosamente investigado, quando, na verdade, os papéis produzidos faziam parte de uma grande encenação para desresponsabilizar o regime ditatorial.

2) Outro caso emblemático é o do jornalista Vladimir Herzog. As reais circunstâncias da morte de Herzog receberam também uma versão encenada. Segundo o laudo cadavérico assinado pelo legista Harry Shibata, o jornalista teria se suicidado, enforcando-se com um cinto na sala em que estava preso. Contudo, anos mais tarde, o próprio Shibata confessou ter assinado o laudo sem ter examinado o cadáver de Herzog, que fora morto sob tortura, como mais tarde foi reconhecido pelo Estado brasileiro, que emitiu um novo atestado de óbito.

Exemplos como estes expõem o que alguns pesquisadores, como Fábio Luís F. N. Franco e Márcia Hattori, têm defendido: para suplementar as ações repressivas diretas promovidas pelas polícias e pelas Forças Armadas, o Estado ditatorial brasileiro colocou em funcionamento um dispositivo burocrático-institucional, no qual se inscreve os órgãos da perícia oficial, que atuava ora conferindo uma roupagem legal a mortes, torturas e desaparecimentos, ora como ator principal na manutenção de violações. Um dos exemplos era o desrespeito a protocolos técnicos e rotinas administrativas para facilitar a perda de documentos de pessoas mortas para, então, serem enterradas como “desconhecidas”.

Nesse sentido, o trabalho investigativo de diversas Comissões da Verdade comprovou que Institutos Médicos Legais e outros órgãos periciais emitiam laudos necroscópicos ou certidões de óbito fraudulentas, com adulteração do nome da vítima, modificação da causa mortis e omissões de informações sobre as condições do óbito – por exemplo, se a morte foi produzida sob tortura ou utilizando algum outro meio cruel. No seu relatório final, a CNV indica 49 médicos-legistas como autores diretos ou cúmplices de condutas que resultaram em graves violações de direitos humanos. Além destes, é possível dizer que tantos outros agentes da perícia oficial participaram direta ou indiretamente da produção de documentos falsos.

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