A luta por terra no Brasil no período pós-ditadura militar remonta a elementos históricos que antecederam esse período de lutas e organização dos camponeses e trabalhadores rurais. Do ponto de vista da perspectiva política, econômica e social, vivida pelo campo brasileiro na época e de suas relações com avanço da modernização conservadora da agricultura em escala internacional, pode-se dizer que, no momento posterior à ditadura, houve o agravamento da luta de classes no campo e a formação de diversas organizações sociais e sindicais destes segmentos.
Entre os mais violentos ataques repressivos à organização camponesa estão: o assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves, em 1983, na Paraíba; o massacre de Corumbiara e o conflito que resultou na morte de dez camponeses, entre eles uma criança, em 1995, em Rondônia; o massacre de 19 camponeses em Eldorado dos Carajás, em 1996, no Pará; o assassinato de Sétimo Garibaldi, militante do MST, em 1998, no Paraná; o massacre de Felisburgo, em Minas Gerais, com a morte de cinco camponeses em 2004; a chacina que vitimou dez trabalhadores rurais na Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará, e culminou, quatro dias depois, no assassinato do líder camponês do acampamento em 2017.
Organização dos movimentos sociais no campo
Em 1975, surgiu a Comissão Pastoral da Terra (CPT) vinculada à Igreja Católica. Ela se organizava a partir de diversas paróquias das periferias das cidades e também em comunidades rurais, dando assistência aos camponeses, tal como faziam as CEBs nos anos do regime militar. No início, a CPT voltou-se à luta dos posseiros do Centro-Oeste e do Norte. Posteriormente, com a eclosão da luta pela terra em todo o país, tornou-se uma instituição de alcance nacional. A atuação da CPT no Sul do país deu origem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Inaugurou-se uma nova relação entre a religiosidade popular e as instâncias oficiais da Igreja. Fé e luta social se unem de outra maneira.
O MST nasceu, em 1984, em um contexto de redemocratização política e de arrefecimento das lutas sociais e de massa no país. O período anterior, sobretudo durante a década dos anos 1970, em pleno fervor da ditadura militar, marcou o aprofundamento das políticas agrícolas encampadas pelos países do capitalismo central, em especial pelos Estados Unidos, impondo um pacote tecnológico para a agricultura conhecido como “revolução verde”, que se sustentava por um tripé que englobava a agricultura extensiva, mecanização pesada e utilização de agrotóxicos. Esse período redefiniu e incorporou por completo a lógica de uma agricultura controlada por mecanismos das grandes empresas multinacionais, expandindo o controle dos mercados internacionais e acumulando mais capital a partir do mecanismo de renda da terra, sobretudo nos países dependentes e periféricos.
No Brasil, essa lógica foi imposta à força por meio dos governos militares e seus economistas, que construíram as bases políticas e econômicas vinculando a modernização conservadora no campo aos processos de industrialização, em um período em que o perfil populacional no Brasil se transformava, tornando-se cada vez mais urbano. Esse movimento contribuiu para a expulsão de milhares de camponeses e de agricultores tradicionais de suas terras, elevando o índice da população sem terra e incorporando-os como mão de obra barata às indústrias, criando um amplo exército industrial de reserva, composto por proletários rurais e subproletários urbanos. No entanto, esse movimento gerou uma crise estrutural, pois o problema da indústria não foi resolvido e, ao mesmo tempo, criou-se uma instabilidade na produção de alimentos, gerando crise, recessão e inflação.
Neste contexto, em 1979, nasceu o embrião do que viria a ser o MST, com a ocupação da fazenda Macali, no município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, organizado pela Comissão Pastoral da Terra. Trabalhadores rurais sem terra, insatisfeitos com o avanço da agricultura latifundiária, se organizaram para cobrar suas terras de volta. Em 1981, o MST ocupou a fazenda Annoni, no município de Sarandi, no Rio Grande do Sul. Centenas de sem terra foram mobilizados, transformando este momento no marco inicial da massificação do movimento e da utilização de táticas de luta como as marchas e as ocupações de órgãos públicos, com o intuito de cobrar do Estado que cumprisse a devolução das terras para os camponeses, retomando as políticas de Reforma Agrária.
A partir de 1984, o MST iniciou sua nacionalização, ocupando latifúndios nos três Estados da região Sul do país, além de Goiás, Bahia, Rondônia e Pernambuco. A crise social e econômica naquela época gerou uma ampla ascensão das lutas de massa, tornando o MST um dos principais movimentos sociais da América Latina que expandiu sua perspectiva de mobilização social e influência política na década dos anos 1990.
Outra entidade de expressão criada anos antes, em 1963, foi Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) com o objetivo de organizar os trabalhadores rurais em federações estaduais e sindicatos municipais. Com o advento da ditadura militar, a Contag entrou na clandestinidade, tendo dificuldades de seguir com a organização até o fim da década de 1970. Na década de 1980, com o processo de redemocratização, ela retornou como braço sindical rural vinculado à Central Única dos Trabalhadores (CUT).
No processo de redemocratização MST e Contag assumiram um importante protagonismo na organização e na luta dos trabalhadores rurais, seja pela organização e luta de massas ou pela representação sindical, respectivamente. No início da década de 1990, outros segmentos surgiram com a necessidade de organização, como a Via Campesina, que se tornou uma articulação também internacional. Estes segmentos compreendem uma rede de nascentes organizações camponesas e com ampla representatividade. É o caso dos pequenos agricultores, organizados pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que não são necessariamente sem terras, mas camponeses pobres; do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), que organiza as camponesas trabalhadoras rurais pobres, que sofrem duplamente em uma ainda profunda estrutura patriarcal; do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que organiza populações camponesas, agricultores tradicionais e familiares atingidos pelos projetos de barragens para geração de energia e, posteriormente, outros movimentos de pescadores artesanais, assalariados rurais, trabalhadores da mineração, indígenas e quilombolas.
Agronegócio e as políticas de Reforma Agrária de Mercado
Com a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, o Brasil passou a uma nova fase política e econômica. As políticas neoliberais e a hegemonia dos EUA consolidaram um padrão de agricultura que passou a se sustentar no sistema financeiro internacional, a partir da hegemonia das grandes transnacionais agrícolas, que passavam a dominar toda a cadeia produtiva. Por aqui, ainda predominavam as lavouras de milho e soja. O cenário no campo passou a ser de um alto padrão tecnológico e financeiro, aliado a estratégias de dominação global controlando a indústria dos agrotóxicos e das máquinas agrícolas (estas cada vez mais informatizadas), e a circulação do capital financeiro destinado à agricultura, a partir de uma ampla rede de relações bancárias. Este modelo, importado durante a década de 1990, fez do país um território dependente das políticas do agronegócio estadunidense, do ponto de vista da agricultura extensiva, da política e da economia.
Criou-se o chamado Programa de Reforma Agrária de Mercado, a fim de vincular o pequeno agricultor familiar às estratégias do mercado global da grande agricultura, estimulando mecanismos como o crédito fundiário, atrelando o crédito à obrigatoriedade de uso de sementes transgênicas, ao uso de agrotóxico e à compra de maquinário pré-determinado. O pequeno agricultor se tornou dependente da lógica hegemônica da agricultura e, para garantir que o trabalhador rural desenvolva efetivamente tal dependência tecnológica dos países do centro, o Estado, a serviço do grande poder econômico, utilizou mecanismos de controle e agressiva repressão, rompendo assim com as formas clássicas de lutas pela Reforma Agrária do campesinato.