O relatório final da CNV trata com clareza da violência sexual como instrumento de castigo, controle, poder ou como uma arma de guerra. Separa a violência sexual do desejo, ou seja, essa violência não foi consequência da sedução e/ou provocação das mulheres presas pela repressão. Parece óbvio ou quase ridículo dizer isso, mas no momento em que o assédio e o estupro em espaços públicos crescem, apoiados por justificativas como a roupa, ou a hora ou até mesmo porque estavam pela rua, o documento ganha especial importância.
Os documentos oficiais da CNV ajudam a desafiar a percepção que existe na sociedade sobre a violência sexual. No Brasil, somente em 2009 o estupro deixou de ser considerado um crime de ação privada contra os costumes, e passou a ser um crime contra a dignidade e a liberdade sexual. Até os anos 1970, o meio jurídico debatia se o marido poderia ser sujeito ativo do crime de estupro contra sua esposa, uma vez que era dever dos cônjuges manter relações sexuais. O resultado dessa negativa se expressa em números: “70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima(…)” (Ipea, 2014)
Estupro e sexo são coisas absolutamente distintas. O estupro é resultado das relações de poder ao tratar as vítimas como objetos e, portanto, desprovidas de desejos e direitos. Assim, frente a uma situação de estupro se repetem duas situações: para os agressores o perdão, para as vitimas a culpa e o silêncio.
Há uma forte tendência de aumento dos crimes de estupro no Brasil. Poucos são denunciados e quando são, as vítimas com frequência são desacreditadas, deslegitimadas e questionadas sobre seu comportamento. Vivemos em uma sociedade marcada pela heterossexualidade compulsória e por uma moral dupla onde os homens são estimulados a exercerem uma sexualidade ativa, a ter muitas parceiras, enquanto a sexualidade feminina seria marcada por uma suposta passividade. Ao mesmo tempo, as mulheres ainda são classificadas como santas ou profanas, sendo castigadas quando agem fora da ordem.
Mesmo com políticas de combate a violência em curso, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, o investimento feito nessa área esbarra nas condições de vida das mulheres e na frágil implementação desses mecanismos.
É por isso que há quatro décadas o movimento de mulheres no Brasil luta para que a violência sexual seja compreendida como um problema político e social, fundado nas relações de poder entre homens e mulheres, não naturalizada ou tratada como algo privado e sem relevância social.
A CNV ao trazer à luz os depoimentos de mulheres (e também homens) que foram sexualmente violentadas abre caminho para que essas práticas sejam rompidas e novas histórias sejam contadas. A violência sexual nunca é culpa da vítima. Nem ontem, nem hoje.