A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou em seu relatório final – no capítulo 5 do volume 2 –, um conjunto de recomendações ao Estado brasileiro, apresentando caminhos para a superação de conflitos atuais e reparação das violências apuradas contra a população indígena brasileira entre 1946 e 1988.
O relatório aponta que a população indígena brasileira foi um dos segmentos mais atingidos por graves violações de direitos humanos no período pesquisado e reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro na usurpação de suas terras. O relatório também desvela a perpetuação destas violências, que seguem afetando seus territórios, cobiçados por diversos setores econômicos. Também reconhece a luta pela reconquista das terras roubadas no passado.
“Por todos os fatos apurados e analisados neste texto, o Estado brasileiro, por meio da CNV, reconhece a sua responsabilidade, por ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum. Diante disso, são apresentadas algumas recomendações.” (Relatório da CNV, Volume 2, Texto 5, p. 253)
A não demarcação das terras indígenas é o foco agravante das violências apuradas no relatório. As 13 recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade apontam para três eixos de ação do Estado brasileiro.
Os três eixos justransicionais de ação do Estado Brasileiro
O primeiro eixo está voltado para o conceito da não-repetição. Tem na demarcação das terras indígenas, na desintrusão das pessoas ou empresas que ocupam irregularmente a terra indígena e na recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas, a centralidade da ação do Estado para que se promova uma mudança de conduta para um desenvolvimento com respeito e para que as graves violações apuradas não aconteçam novamente. O relatório da CNV conclui que,
“Do ponto de vista dos governos militares e também de uma parcela do empresariado brasileiro, os índios estavam explicitamente excluídos tanto da condição de cidadãos brasileiros que deveriam ser levados em conta nos projetos governamentais, em sua diferença, quanto de eventuais benefícios que o “desenvolvimento do país” poderia trazer às suas populações. Eram correntes na imprensa as declarações explícitas dos agentes do Estado caracterizando os índios como obstáculos ao desenvolvimento do país. (…)
Em síntese, pode-se dizer que os diversos tipos de violações dos direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas no período aqui descrito se articularam em torno do objetivo central de forçar ou acelerar a “integração” dos povos indígenas e colonizar seus territórios sempre que isso foi considerado estratégico para a implementação do seu projeto político e econômico.
(…) Assim, se estabelece na prática uma política que, ao invés de proteger os “usos, costumes e tradições” indígenas, atua diretamente para alterá-los sempre que se julga que se apresentam como um “empecilho” ao projeto político do governo. É gestada uma política de exceção, a partir da qual o “modo de ser” de cada um dos povos indígenas permanece sempre sob suspeita e a proteção dos seus territórios, assegurada pela Constituição, torna-se arbitrariamente passível de relativização ao sabor de interesses políticos.” (Relatório da CNV, Volume 2, Texto 5, p. 251-252)
A CNV propõe a construção do “Nunca Mais” no Brasil, garantindo a não-repetição das violências passadas, e a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade “visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo”, uma vez que o apurado nos dois anos de trabalho ficou muito distante da totalidade de denúncias de graves violações recebidas pelo grupo de trabalho da CNV sinalizando que há muito a ser investigado
A reparação individual e coletiva dos povos atingidos é o tema do segundo eixo, que propõe o reconhecimento pelos demais mecanismos e instâncias da Justiça de Transição, de que “a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política” gerando as violências praticadas contra os indígenas. Espera-se que a reparação dos casos apontados no relatório final sejam efetivadas.
Recomenda, ainda, como medida de reparação, o fortalecimento de políticas públicas de atendimento à saúde indígena ligadas ao SUS, por constatar que a precarização do atendimento à saúde do índio e o descaso com o contato eram parte da estratégia de violações de direitos que os vitimaram.
Além disso, o eixo aponta a necessidade de que sejam apresentadas proposições legislativas de caráter reparatório coletivo voltado aos povos indígenas e a criação de grupo de trabalho no Ministério da Justiça, para viabilizar as reparações individuais daqueles que sofreram graves violações de direitos humanos nos presídios para indígenas criados pelo Estado, localizando e encaminhando os atingidos ou seus familiares à Comissão de Anistia, para formalização de processos de reparação.
O terceiro eixo, complementar aos anteriores, apresenta a necessidade de ações pedagógicas vinculadas à estrutura educacional do estado e à comunicação com a sociedade, tais como, a necessidade de um “pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas”, a promoção de campanhas de esclarecimento da sociedade sobre os direitos dos índios e as violências sofridas por eles no período apurado pela CNV. Para isso, foi sugerida a incorporação do tema na grade curricular de ensino, com estímulo e fomento à pesquisa sobre a violência contra o indígena brasileiro e também a divulgação e acesso digital público aos documentos recolhidos pela CNV, sob guarda do Arquivo Nacional. Tudo isto com o intuito de favorecer a continuidade da apuração destas violências e a conscientização da sociedade sobre a necessidade de reparar os povos indígenas, devolver suas terras e respeitar sua cultura.
O relatório e as recomendações apresentados pela CNV trazem racionalidade ao debate sobre a legitimidade e urgência de se efetivar as demarcações das terras indígenas. Apontam o caminho justo a ser trilhado no país, demarcando-as e apresentam ao Executivo, Legislativo e Judiciário a necessidade de que a demarcação também seja realizada como um ato de concretização da Justiça Transicional, devida aos povos indígenas pelos governantes, legisladores e membros do judiciário no presente.