Instalada em maio de 2012, com o objetivo de investigar e esclarecer as violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988, a Comissão Nacional da Verdade trouxe à tona a temática das lutas pela terra, criando um Grupo de Trabalho sobre camponeses e indígenas. Sua tarefa era elucidar fatos, circunstâncias e autorias de casos de graves violações de direitos humanos às populações do campo, tornando públicos estruturas, locais, instituições, circunstâncias dessas autorias. Entre elas, torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres, ameaças, despejos, agressões físicas, prisões, exílios (no exterior e no próprio país), destruição de famílias e de bens.
A atuação deste grupo, coordenado por Maria Rita Kehl, compreendeu a realização de audiências públicas, organização e sistematização de dados e investigações reunindo documentos valiosos para reconstituição da memória e verdade sobre esse período. Todo esse trabalho teve o fundamental apoio direto da rede nacional de pesquisadores da Comissão Camponesa da Verdade (CCV). O resultado do trabalho do GT da CNV pode ser conferido no volume 2 do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.
Também em 2012, durante o “Encontro Unitário dos Trabalhadores e Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas”, foi elaborada a proposição de formação da Comissão Camponesa da Verdade (CCV) para investigar os processos de repressão na ditadura militar. O evento reuniu, em Brasília (DF), representantes de 40 organizações camponesas e indígenas e movimentos ligados à luta pela terra e territórios. O processo resultou na articulação de uma rede nacional de pesquisadores, que sistematizou informações sobre violação de direitos de camponeses no país, entre 1946 e 1988, e na produção do Relatório Final da CCV de 2014.
A Comissão Camponesa da Verdade mostrou, com especial atenção, uma narrativa da dor e da luta dos camponeses, que com suas reivindicações e diferentes formas de organização, enfrentaram as entidades patronais, os grileiros, os grandes proprietários de terra e seus capangas, além de agentes do Estado que usaram as forças oficiais a serviço dos latifundiários. No contexto de preparação para o regime civil-militar, promotor do processo de modernização conservadora no Brasil e a manutenção deste período que se iniciou com o golpe de 1964, a luta camponesa foi sistematicamente reprimida.
A partir do compromisso firmado, de combater e denunciar a violência e a impunidade no campo e a criminalização das lideranças e movimentos sociais promovidas pelos agentes públicos e privados, a CCV formulou suas recomendações ao Estado brasileiro.
Entre elas, estão:
- Que o Estado brasileiro, no âmbito da União, dos Estados e dos municípios, reconheça as graves violações de direitos humanos cometidas contra camponeses/as no período compreendido entre 1946 e 1988, e garanta às vítimas e famílias das vítimas a devida reparação moral e material, tanto individual quanto coletiva;
- Que o Estado brasileiro implemente uma política efetiva de reforma agrária, institua um limite da propriedade da terra e proceda ao reconhecimento, titulação e demarcação dos territórios das comunidades indígenas, quilombolas e demais populações tradicionais camponesas;
- Que o Estado Brasileiro, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário procedam as medidas necessárias para que a Lei de Anistia não continue a representar um obstáculo para a investigação e a efetiva punição dos agentes públicos e privados responsáveis pela prática de crimes contra a humanidade durante a ditadura civil-militar;
- Que o Estado brasileiro promova políticas públicas destinadas à preservação da memória camponesa, através do fomento a pesquisas voltadas à recuperação, análise e registro de documentos e acervos, bem como a programas de investigação e publicação de materiais sobre temas correlatos ao direito à memória e à verdade, especialmente às graves violações de direitos humanos ocorridas no campo, e a inclusão de tais temáticas no currículo da Educação Básica;
- Que o Estado Brasileiro estimule a criação de memoriais, centros de informação, museus e monumentos, e preserve espaços públicos que se configuram em “lugares de memória” das lutas no campo e dos camponeses e camponesas vítimas da ditadura;
- Que o Estado brasileiro, no âmbito do Sistema de Justiça (Tribunais de Justiça, Procuradorias e Defensorias), promova ampla e criteriosa investigação penal dos crimes cometidos contra camponeses/as e suas organizações, bem como amplie a investigação de improbidade administrativa praticada por agentes do Estado supostamente omissos ou coniventes com tais crimes através das Corregedorias e Ouvidorias de órgãos públicos;
- Que o Estado brasileiro, através do Congresso Nacional e da Presidência da República, suprima do ordenamento jurídico brasileiro a Lei de Segurança Nacional, bem como outras normas remanescentes de períodos de exceção que afrontam os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre direitos humanos;
- Que o Estado Brasileiro cumpra integralmente a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação ao caso “Gomes Lund e outros” (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, bem como promova a formação dos profissionais da área de segurança pública e militares em programas de educação em direitos humanos;
- Que o Estado brasileiro cumpra integralmente as diretrizes do “Plano Nacional de Combate à Violência no Campo” e do “II Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo”;
- Que o Estado brasileiro reconheça os casos de violações e a história de repressão política aos camponeses e camponeses apresentados no Relatório da Comissão Nacional da Verdade e que promova a continuidade da investigação sobre casos eventualmente não estudados ou considerados inconclusivos por um novo órgão do Estado que dê seguimento aos trabalhos da CNV;
- Que o Estado brasileiro amplie e consolide uma política de combate à grilagem de terras públicas, reintegrando ao seu patrimônio as terras devolutas e destinando-as à Reforma Agrária;
- Que o Poder Judiciário eive esforços junto aos tribunais estaduais e federais para julgar todos os processos que envolvem crimes cometidos contra camponeses/as e que tramitam na Justiça, efetivando as indenizações e responsabilizações cabíveis;
- Que o Estado brasileiro implemente medidas eficazes de consulta prévia, informada e participativa no que tange a consolidação de políticas públicas, reconhecimento, demarcação e titulação de territórios quilombolas, indígenas e de povos tradicionais conforme a convenção da Organização Internacional do Trabalho;
- Que o Estado brasileiro assegure os direitos das populações que vivem no campo, com direito à moradia, à educação (formal e não-formal) e à alimentação adequada, de acordo com as diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos III;
- Que o Estado brasileiro crie instrumentos efetivos para coibir e eliminar a violência no campo, de forma a garantir os direitos dos/as camponeses/as e suas famílias e assegurar a não repetição de práticas de violação de direitos que, historicamente, têm marcado de forma intensa a vida da população camponesa.