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Abertura da Audiência Pública sobre Ditadura e homossexualidade
Abertura da Audiência Pública sobre Ditadura e homossexualidade.

LGBT+

Até recentemente, as discussões sobre a repressão às pessoas LGBT+, assim como as formas de resistência empreendidas por indivíduos e movimentos representativos desse segmento, não eram muito comuns no trabalho de Memória e Justiça no Brasil. As políticas públicas voltadas à proteção, afirmação e reconhecimento de direitos das pessoas LGBT+, também não observavam esse recorte específico e, mesmo as pesquisas acadêmicas demoraram a incorporar adequadamente essa perspectiva.

Especialmente em relação às Comissões da Verdade, este quadro começou a se alterar especialmente a partir da realização da 98º audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” (CEV de São Paulo), em 26 de novembro de 2013, com o tema “Ditadura e homossexualidade: resistência do movimento LGBT”. Para falar a essa audiência, foram convidados James N. Green e Marisa Fernandes, militantes reconhecidos e históricos do movimento LGBT+ e da luta contra a ditadura. Ambos fizeram importantes relatos, tanto como indivíduos que vivenciaram os fatos, quanto como pesquisadores dedicados a investigar as formas de operar de um poder repressor que perseguiu as sexualidades dissidentes.

O professor James Green é um estudioso do Brasil e ativista dos direitos LGBT. É professor de História da América Latina na Brown University – Rhode Island, Estados Unidos, e colaborador da CNV.

Sensibilizados pelas questões trazidas pelos dois depoentes, os membros da Comissão Nacional da Verdade se propuseram a tarefa a realizar uma segunda audiência, em conjunto com a CEV de São Paulo, intitulada “Ditadura e Homossexualidade no Brasil”. Em parceria com o Memorial da Resistência, essa audiência aconteceu no dia 29 de março de 2014, na sede do antigo DOPS em São Paulo, e foi bem mais ampla que a primeira.

Com a presença de diferentes setores dos movimentos sociais de direitos humanos e LGBT+, os pesquisadores convidados apresentaram seus trabalhos, que tratavam de diferentes aspectos das arbitrariedades relativas ao cruzamento entre ditadura e homossexualidades. Entre os estudiosos, estiveram presentes: Benjamin Cowan, Rafael Freitas, Renan Quinalha, e Rita Colaço e, novamente, James N. Green e Marisa Fernandes. No capítulo temático sobre homossexualidades, que consta no relatório final da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, há um bom panorama das discussões ocorridas a partir da descrição minuciosa das falas desses pesquisadores.

Benjamin Cowan, por exemplo, apresentou sua pesquisa sobre o discurso homofóbico da ditadura, obtido em textos de revistas militares, documentos e discursos de oficiais das Forças Armadas, no período. Cowan salientou que a associação entre a homossexualidade – tida como uma ameaça aos “sagrados” valores da família – e a subversão política foi um dos pilares de sustentação da ideologia moralista e conservadora da ditadura. Servia como justificativa para a face da repressão que teve como alvos específicos os gays, as lésbicas e travestis nos anos de 1960 e 70.

James Green, por sua vez, historiou a sua atuação durante a ditadura militar. Também destacou a articulação do grupo SOMOS – do qual foi um dos fundadores – e as relações do nascente movimento LGBT com a esquerda brasileira, durante o processo de redemocratização do país, a partir de 1985.

Marisa Fernandes refletiu sobre a situação das lésbicas na sociedade brasileira e o papel que desempenhavam no interior do movimento LGBT+. Falou igualmente sobre a atuação das lésbicas no movimento feminista, que também se reorganizava. Lembrou, ainda, a perseguição da censura aos livros da Cassandra Rios, escritora lésbica, cujos romances eróticos eram sistematicamente censurados durante a ditadura.

Rafael Freitas apresentou um panorama das arbitrariedades e da violência praticadas pelas as forças de segurança, nas ruas da cidade de São Paulo, entre 1976 a 1982, contra a população LGBT+ e prostitutas. Destacou, em especial, a atuação sistemática, repressiva e violenta dos delegados José Wilson Richetti e Guido Fonseca.

Renan Quinalha discutiu a relevância de se incluir, no trabalho de Memória e Verdade, um recorte sobre as perseguições sofridas pelas pessoas LGBT+ no período ditatorial – o que não havia ocorrido até aquele momento. Quinalha sinalizou a importância histórica dessa mudança de postura e a necessidade de ampliação do quadro de vítimas a considerar para a construção das narrativas, levando-se em conta os marcadores sociais da diferença que operam no campo da sexualidade e do gênero.

Por fim, Rita Colaço abordou aspectos relativos ao sistema de justiça e às operações de censura, destacando as maneiras como o Estado repressor se valeu desses instrumentos para controle das liberdades de expressão e artística. Sua pesquisa apurou casos de jornalistas, artistas e apresentadores de TV, demonstrando como a moral conservadora informava esses aparatos de repressão.

A partir dessas pesquisas e da pressão do movimento LGBT+ organizado na audiência pública, a Comissão Nacional da Verdade decidiu incluir, em seu relatório final, um capítulo específico sobre as violações de direitos humanos das pessoas LGBT+, apesar da resistência de alguns de seus componentes.

Além da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, e da CNV, também a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro incorporou em seu relatório final um capítulo específico sobre a ditadura e as homossexualidades no Estado do Rio de Janeiro.

Esse foi um passo fundamental para a inscrição, na história oficial sobre a ditadura, das violências sofridas por pessoas LGTB+ em função de suas orientações sexuais e identidades de gêneros. Foi igualmente importante para embasar as recomendações de medidas administrativas e políticas públicas a diferentes esferas do Estado brasileiro no que diz respeito a esse tema.

A Comissão Nacional da Verdade elaborou a recomendação 23, específica contra a discriminação das homossexualidades, na qual adverte para a necessidade de:

“Supressão, na legislação, de referências discriminatórias das homossexualidades”. Ao detalhar o escopo desta advertência, “recomenda-se alterar a legislação que contenha referências discriminatórias das homossexualidades, sendo exemplo o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime ‘praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar’. A menção revela a discriminação a que os homossexuais estão sujeitos no âmbito das Forças Armadas”.

Essa recomendação foi considerada, aceita e implementada pelo governo, tendo sido decisiva para tanto uma ação judicial movida pela Procuradoria-Geral da República, em que se questionava justamente a constitucionalidade desse dispositivo discriminatório do Código Penal Militar. Em outubro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ação procedente em parte, declarando que não fora acolhido no texto Constitucional, de 1988, as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”. Deu-se, assim, o cumprimento de uma recomendação da CNV.

Ao mesmo tempo, a Comissão paulista elaborou uma ampla lista de recomendações voltadas a essa temática:

  • Criminalização da homofobia, lesbofobia e transfobia;
  • Aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero;
  • Construção de lugares de memória dos segmentos LGBT+ ligados à repressão e à resistência durante a ditadura, como a Delegacia Seccional do Centro na Rua Aurora, o Departamento Jurídico XI de Agosto, o Teatro Ruth Escobar, o Presídio do Hipódromo, o Ferro’s Bar e as escadarias do Teatro Municipal;
  • Pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído junto ao movimento LGBT+.
  • Reparação às pessoas LGBT+ perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado;
  • Convocação dos agentes públicos mencionados para prestarem esclarecimentos sobre os fatos narrados no relatório;
  • Revogação da denominação de “Dr. José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, do departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo pela Lei 7076 de 30/04/1991;
  • Suprimir, nas leis, referências discriminatórias das homossexualidades: um exemplo é o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.

Excetuando-se esse último ponto, que ecoava a recomendação 23 da CNV, sobre o Código Penal Militar, nenhuma outra medida foi tomada em resposta ao que foi sugerido pelas Comissões da Verdade em relação às pessoas LGBT+ – numa  demonstração veemente de que o caminho da cidadania plena e da igualdade de direitos desses segmentos ainda precisa ser trilhado em nosso país.

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