A ditadura militar no Brasil foi contemporânea de um período de efervescência cultural e da Guerra Fria, assim o combate ao comunismo por ela empreendido levantou a bandeira de valores da família tradicional como sendo os pilares da sociedade. Os registros da repressão e de como se comportavam seus agentes explicitam a íntima ligação entre o regime militar e essa ideologia conservadora.
Os relatos recolhidos pela CNV nos permitem ver que as mulheres não eram torturadas somente pela informação que poderiam dar, mas por terem desobedecido às regras em torno do que era “ser mulher”. Violência sexual, desnudamento forçado, abortos provocados, ameaça de tornar infértil, separação dos filhos, tortura contra familiares, o uso da maternidade pela repressão e diversas formas de humilhação foram praticadas especificamente contra as mulheres. Um caso emblemático é o de Maria Amélia de Almeidas, a Amelinha, que teve seus filhos raptados pelos agentes do regime e, depois de submetida a torturas físicas, foi colocada diante das crianças. Todas essas práticas apontadas as penalizavam por serem mulheres e terem fugido à norma.
A violência contra as mulheres praticada pelo Estado no contexto de um regime político autoritário tem a intenção de reprimir as mulheres por não se encaixarem em nenhum dos dois modelos oferecidos pelo patriarcado: santas ou putas. Fora disso, para os militares, não deveria existir. Entretanto, a presença e resistência das mulheres nos porões da ditadura deixou claro que elas já não cabiam nesses padrões.
O que diz o relatório
Um resultado muito importante do grupo de trabalho Ditadura e Gênero foi o capítulo 10 do Volume 1 do relatorio final da CNV, Violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes. O capítulo começa afirmando que:
“A violência sexual, exercida ou permitida por agentes de Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, a normativa e a jurisprudência internacionais consideram que a violência sexual representa grave violação de direitos humanos e integra a categoria de “crimes contra a humanidade”. No cumprimento de seu mandato, ao buscar promover o esclarecimento circunstanciado de casos de tortura ocorridos durante a ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) pôde constatar que a violência sexual constituiu prática disseminada do período, com registros que coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado.”
O documento aponta que a violência sexual é uma forma de tortura quando cometida por agente público ou sem consentimento. Dessa forma a CNV situa a violência sexual como mais um dos crimes contra a humanidade, constituindo uma forma de tortura, não apenas parte dela. Esse reconhecimento permite que individuos e/ou instituições sejam responsabilizados por esse crime separadamente a outras formas de tortura.
A partir de depoimentos e arquivos a CNV identificou que essa foi uma prática constante nos centros de tortura da ditadura, e que funcionava como instrumento de dominação e poder. Além disso, o estupro no contexto da repressão é também tratado como arma de guerra. Ao longo da história os corpos das mulheres foram apropriados em ambientes de conflito para afetar a honra da outra parte, como “recompensa” ou espólio depois da batalha. Como se guardasse a honra dos seus companheiros, pais e irmãos, as mulheres foram injuriadas, torturadas e estupradas como forma de afetá-los e ofendê-los. Exemplo disso são os casos onde casais foram presos e torturados juntos. Essas indicações permitem analisar como as torturas reforçaram as desigualdades de gênero, mostrando que a repressão e a própria ditadura estavam apoiadas no patriarcado.
O documento detalha a tortura em caso de violência sexual como uma prática que inclui tanto a violação física (penetração vaginal, anal ou oral) como “atos que não imponham contato físico, como o desnudamento forçado e a revista íntima”. Nomear as práticas de violência sexual é essencial para dar materialidade às denúncias de violência sexual nos mais diferentes contextos, e que ainda são difíceis de serem levadas adiante.
Por ser marcado por um silencio particular, a violência sexual foi um dos aspectos menos conhecidos das muitas violências praticadas. Como afirmaram depoentes durante a audiência pública “Verdade e Gênero”, celebrada pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva e a Comissão Nacional da Verdade, as denúncias das torturas muitas vezes minimizaram o estupro frente a outras violências sofridas. Ainda hoje os crimes sexuais praticados contra mulheres e homens durante a ditadura permanece carregado de estigma, impunidade e indiferença. Trazer a percepção de mulheres e homens que sofreram violência sexual ajuda a tirar do silêncio e dar legitimidade às vozes das vítimas.