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A polícia dos dias atuais

A violência letal que tem como vítimas preferenciais os jovens – em sua maioria negros e pobres –, é provocada pela atuação das instituições de segurança pública, em especial da PM. Esta violência policial é fruto tanto da ação direta, mediante intervenção policial, quanto da omissão de órgãos de controle das polícias, como as Corregedorias de Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Desde a redemocratização, o Brasil melhorou de forma substantiva seus indicadores socioeconômicos de renda, emprego, escolarização e saúde. Entretanto, os indicadores da segurança pública nos mostram uma realidade bem menos otimista. É interessante observar os dados trazidos pelos Anuários de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para acompanhar as atualizações nos índices do país.

Mesmo com tantos homicídios ocorrendo todos os dias no país, é bastante incipiente a taxa de elucidação deste tipo de crime pela Polícia Civil. Segundo relatório produzido pela Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), em 2011, estima-se que o índice de esclarecimento dos homicídios no Brasil varie entre 5% e 8%. Isto significa que apenas uma parcela ínfima dos autores de homicídios são identificados e, por isso, não serão processados pelo sistema de justiça criminal.

Outro dado, esse trazido pelo 10º Anuário de Segurança Pública, se refere à violência cometida por policiais ou sofrida por eles. Segundo a pesquisa, a polícia brasileira mata e morre muito. Pela análise dos dados incluídos no Anuário, é possível concluir que a polícia brasileira é violenta: 70% das pessoas entrevistadas acham que as polícias exageram no uso da violência. Mesmo assim, o aparato policial tem suas ações legitimadas por parte da população, visto que metade dos entrevistados, ou 50%, acha que a PM é eficiente em garantir a segurança da população e 52% acreditam que a Polícia Civil é eficiente no esclarecimento de crimes. Desta forma, a questão da violência policial é um tema difícil, porque apesar de vitimar todos os dias muitas pessoas – na sua maioria jovens negros e pobres – ela é autorizada tacitamente a agir como tal por uma grande parte da população brasileira.

A continuidade das mortes cometidas por policiais só é possível porque tem o endosso de outras instituições do sistema de justiça criminal brasileiro. No estado de São Paulo, por exemplo, dos autos remetidos à Justiça Militar de São Paulo, o Ministério Público só propõe denúncia contra policiais em 10% dos Inquéritos Policiais Militares remetidos para a sua análise, incluindo-se os casos de mortes por intervenção policial. Há, portanto, aceitação por parte do Poder Judiciário da forma como a polícia tem desempenhado suas intervenções, mesmo com os alarmantes números da letalidade policial.

Os homicídios cometidos por policiais e o genocídio contra a juventude negra 

A brandura das leis brasileiras para com a letalidade policial é uma grave ameaça aos direitos humanos e um risco à população atendida pelas polícias. É evidente que se trata de uma violação que atinge especialmente jovens negros e moradores de periferias, como têm demonstrado os dados da segurança pública no Brasil. 

“Os dados que permitem construir o perfil das vítimas da letalidade policial mantém são faceta evidente e consolidada historicamente do racismo que estrutura a sociedade brasileira. 83% dos mortos pela polícia em 2022 no Brasil eram negros, 76% tinham entre 12 e 29 anos. Jovens negros, majoritariamente pobres e residentes das periferias seguem sendo alvo preferencial da letalidade policial e, em resposta a sua vulnerabilidade, diversos estados seguem investindo no legado de modelos de policiamento que os tornam menos seguros e capazes de acessar os direitos civis fundamentais à não-discriminação e à vida. O dado sobre local de ocorrência revela a prevalência (68,1%) dos espaços públicos como de maior frequência das ocorrências de MDIP, ao passo que, residências das vítimas e outros tipos de local somam juntos um terço das ocorrências, ou seja, 1/6 das vítimas de letalidade policial foi morta dentro de casa.” (17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023)

Os números apontam para o reconhecimento de um racismo institucional operando no cotidiano das polícias no Brasil, que culmina no elevado número de jovens e negros que são vitimados pela política, intensificando a desigualdade racial no Brasil. Além dos números, essa realidade é relatada cotidianamente por centenas de mães e familiares destes jovens, que vão aos jornais denunciar a morte de seus filhos, formam associações e realizam protestos pelo país, em que pedem a punição aos policiais e o fim desta triste realidade.

As denúncias sobre a violência policial nas abordagens são formuladas por coletivos do associativismo antirracista que começaram a despontar no espaço público com esta pauta nos anos 2000. Na denúncia destes coletivos, aparece a reiteração de um padrão de atuação policial que não é apenas violento, mas que tem como alvo um público específico (jovens pobres negros), identificado sempre como suspeito de cometer crimes. Tais ações, segundo os movimentos sociais, não são voltadas somente contra aqueles que, de fato, cometeram delitos, mas recaem genericamente sobre um conjunto da população objetivamente marcado por raça, classe, território, idade e gênero. Amparados em pesquisas diversas sobre o perfil das vítimas dos homicídios no Brasil, os movimentos argumentam que a Polícia Militar tem sido a responsável pelo “genocídio da juventude negra no país” – nomeação própria destes coletivos.

Os “alvos” da PM e a seletividade penal 

Por conta do modelo policial repartido entre Polícia Civil e Polícia Militar, a PM não tem a responsabilidade de investigar crimes, função que é exclusiva da Polícia Civil. Com isso, os crimes priorizados pela PM são aqueles passíveis de identificação em flagrante, ou seja, aqueles crimes que um policial consegue identificar andando nas ruas e vigiando as pessoas, como furtos de celulares, comércio de pequenas quantidades de drogas, entre outros. Isso significa que outros tipos de crimes, como homicídios, grandes vendas de drogas, lavagem de dinheiro, entre outros, não serão detectados por policiais que realizam o policiamento ostensivo.

Além disso, alguns tipos de crimes, territórios periféricos e determinados grupos populacionais são “alvos” preferenciais da atuação da PM e, consequentemente, do sistema de justiça. Desta forma, a da atuação policial da PM vai colocar dentro das prisões, na maioria das vezes, jovens negros e pobres.

Esta característica do sistema de justiça criminal, que privilegia a punição de certo perfil de pessoas, ou de algumas condutas criminais, e age com brandura e displicência diante de outras condutas, é chamada de seletividade na ação policial, definição que se estende a procedimento semelhante no sistema de justiça criminal.

Dois fatores são de suma importância e incrementam a seletividade penal no Brasil. O primeiro se refere às desigualdades da sociedade, que se manifestam inclusive no acesso à justiça: se necessário, algumas pessoas poderão contratar advogados, pagar fianças e, assim, terão direito à defesa, enquanto outras não terão essa possibilidade porque não podem arcar com os gastos necessários ou, em caso de recorrerem à Defensoria Pública, podem não ter seus casos tratados com devida prioridade. O segundo fator se refere ao racismo que perpassa as instituições do sistema de justiça no Brasil. Para agentes do sistema de justiça criminal e da segurança pública, pessoas negras já são consideradas, de antemão, culpadas, antes mesmo do devido processo legal de apuração de um crime. Desta forma, em razão da sua posição social e/ou da cor/raça, as pessoas serão mais ou menos vigiadas pelas polícias, mais ou menos detidas em flagrante delito, mais ou menos processadas por cometerem crimes.

Assim, em razão da seletividade no sistema de justiça criminal no Brasil, existe um acúmulo de desvantagens para os jovens negros e pobres, em relação ao restante da população – especialmente no que tange ao direito à vida segura e ao risco maior que correm de serem presos por crimes patrimoniais.

Associativismo antirracista

São considerados ativistas do associativismo antirracista: militantes do movimento negro e pela igualdade racial, membros de instituições participativas que formulam políticas públicas, como conselhos, integrantes de ouvidorias e pessoas que tenham sofrido práticas discriminatórias de policiais. Estes ativistas lutam pelo entendimento de que, em uma sociedade estruturalmente racista e discriminatória, a raça funciona como produtora de desigualdades nas relações sociais, políticas e jurídicas; lutando assim pelo fim destas desigualdades e discriminações.

Coletivos antirracistas

Destacam-se os movimentos chamados “Mães de Maio” e “Contra o Genocídio do Povo Negro”. O primeiro surgiu em 2006, no estado de São Paulo, e é formado por uma rede de mães, outros parentes e amigos de pessoas mortas em decorrência de ações policiais nos episódios de maio de 2006, quando policiais e grupos paramilitares de extermínio promoveram uma “onda de resposta” ao que se chamou na grande imprensa de “ataques do PCC”. Foram assassinadas no mínimo 493 pessoas – que hoje constam entre mortas e desaparecidas. Há estudos, no entanto, que apontam para um número ainda maior de assassinatos no período, considerando ocultações de cadáveres, falsificações de laudos e outros recursos utilizados por tais agentes públicos violentos. Um acontecimento que vitimou, sobretudo, jovens pobres negros. Já o segundo é um grupo formado sobretudo coletivos do associativismo antirracistas que denunciam a questão racial como causa da desvantagem nas mortes e prisões de jovens negros pela polícia. O grupo surgiu em 2012 diante de outro episódio de confronto entre policiais e o PCC, que gerou inúmeras mortes em periferias, resultado de execuções ou ações policiais.

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