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As Clínicas do Testemunho

As Clínicas do Testemunho

O projeto Clínicas do Testemunho foi criado em 2012, pela Comissão de Anistia, visando a reparação psíquica daqueles afetados pela ditadura brasileira. O Clínicas do Testemunho busca também dar atenção à saúde das pessoas que sofreram atos de violência política, levando em conta que muitas delas ainda sofrem com as marcas das violações que sofreram e que esses processos inclusive se repetem nas gerações seguintes, que sofrem da violência política de forma “indireta”. O processo de reparação psíquica a esses traumas pode acontecer de diversas maneiras, não somente pelas ações deste projeto. Eles também ocorrem cotidianamente, em conversas familiares, em atividades de expressão artística, na procura de um tratamento terapêutico particular, mas uma política pública destas tem importância simbólica, podendo representar mais um passo de reconhecimento por parte do Estado.

O Clínicas do Testemunho financiou em diferentes estados do país o trabalho terapêutico de grupos e instituições que tinham uma trajetória política já envolvendo trabalhos de reparação psíquica e que concorreram aos editais lançados pelo Ministério da Justiça. O primeiro edital ocorreu em 2012, com um investimento total de R$2.174.338,28 para financiar o trabalho que ocorreu entre janeiro de 2013 e dezembro de 2015. O segundo edital deu suporte ao trabalho realizado em 2016 e 2017.

O projeto Clínicas do Testemunho variava ligeiramente de acordo com cada um dos núcleos que o executava, mas suas principais ações contemplavam:

  1. Atendimentos individuais para pessoas inscritas na Comissão de Anistia;
  2. Grupos terapêuticos;
  3. Atividades públicas e coletivas de testemunho;
  4. Eventos e palestras de cunho teórico;
  5. Oficinas terapêuticas.

As atividades aconteciam de forma isolada, em um espaço seguro e acolhedor, ou em formato de Conversas Públicas, com testemunhos e histórias abertas para um público interessado, tendo caráter contínuo, possibilitando, ainda, atendimentos individuais ou em grupo. Estas duas modalidades produziam efeitos diferentes, mas que podiam ser complementares, já que muitas vezes uma pessoa iniciava pelo atendimento individual e posteriormente ingressava em um grupo terapêutico, ou vice-versa. Os atendimentos individuais muitas vezes eram procurados por aqueles que ainda lidavam frequentemente com sofrimentos relacionados aos acontecidos durante a ditadura, ou por aqueles que queriam analisar as repercussões atuais dos acontecimentos daquela época de modo mais direcionado. Os atendimentos em grupo possibilitavam uma partilha de memórias em um grupo de pessoas com histórias semelhantes, o que cumpria um aspecto de segurança que lhes era importante. Além disto, o grupo permitia que diversos participantes ouvissem divergências sobre experiências parecidas, por exemplo, para uma pessoa pode ter sido muito duro viver em exílio, enquanto outra pode enxergar alguns aspectos positivos de viver em um país estrangeiro.

O Clínicas do Testemunho também significou uma mudança no alcance e pretensão das ações de reparação do Estado quanto às consequências da ditadura, primeiro ao reconhecer que a saúde mental das pessoas que sofreram violações merecia cuidado, e uma ampliação na perspectiva de quem eram as pessoas afetadas pela violência política. Será que a ditadura afetou mesmo os brasileiros que não se sentiram violentados ou traumatizados naquela época, ou, ainda mais, será que alguém nascido após 1988 pode ter sido afetado pela ditadura de alguma maneira?

As considerações levantadas apontam que se as pessoas afetadas diretamente pela ditadura mereciam um cuidado especial, as próprias características sociais de um trauma tornavam necessário o esforço de pensar como diversas outras pessoas que não estavam diretamente envolvidas em movimentos de resistência política poderiam ter sido afetadas pela ditadura. Isto porque o trauma se espalha, marca uma sociedade e tende a se repetir.

A população periférica também enfrentou as problemáticas de omissão de contabilização de mortos, como ocorreu com povos indígenas e camponeses. Registros oficiais apontam que somente 436 moradores de periferias foram mortos por agentes da ditadura militar. Alegando falta de provas das perseguições, ou que a violência enfrentada por esta população não se enquadrava num projeto visando as vítimas da ditadura, muitas dessas pessoas não puderam ser inscritas oficialmente, o que levou as equipes do Clínicas do Testemunho a buscar outras formas burocráticas para que o trabalho de reparação psíquica chegasse até elas.

Ainda era mantida uma articulação com a sociedade civil, entre ex-presos políticos, familiares e movimentos sociais, para manter continuamente a reflexão sobre os rumos do projeto, contudo, isto não significou que o projeto Clínicas do Testemunho ficou isento de diversas contradições e impasses. Somado às dificuldades de inscrição de pessoas como beneficiárias do projeto e até mesmo uma ausência de trabalho planejado de divulgação para possíveis interessados, sendo que estes dois problemas afetavam o alcance do trabalho clínico, a atuação dos núcleos foi significativamente impactada pelas modificações feitas na Comissão da Anistia após a grave crise das instituições e dos direitos que gerou o impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff, enfraquecendo o seu poder político no país.

Ivan Seixas tinha 16 anos quando foi preso e torturado durante a Ditadura Militar de 1964. Viu seu pai ser morto na sua frente e só saiu da cadeia aos 22 anos. No vídeo, Marcelo Torelly, da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, explica o projeto, que dá voz às vítimas da tortura.

Ainda assim, enfrentando estas dificuldades, o projeto Clínicas do Testemunho realizou um trabalho enorme, dando reconhecimento e cuidado psíquico a pessoas que guardaram suas histórias em silêncio por décadas. Uma vez que ações terapêuticas de reparação psíquica possibilitaram o reconhecimento da experiência sofrida e a legitimação da injustiça imposta através do Estado, muitos ativistas e profissionais da área relataram a potência que o testemunho engendra nas lutas sociais, provocando mais vínculos por identificações, empatia e solidariedade.

Desta forma, é comum uma luta por justiça social surja de casos de violência política. Não à toa que grande parte dos militantes dessa área são ex-presos políticos ou familiares, como os diversos movimentos sociais que denunciam a violência de Estado na democracia também são compostos por afetados por esta violência e familiares. “Do Luto à Luta” é o lema de muitos desses movimentos, e título de um dos livros do movimento Mães de Maio, grupo composto por mães que tiveram filhos mortos pela violência policial. O efeito reparador que existe no ativismo é apontado por muitos profissionais dos núcleos terapêuticos e outras iniciativas que buscam apoiar essa luta. O que permite a sobrevivência diante dos efeitos do trauma, muitas vezes, é a luta para a transformação da realidade que provocou esse sofrimento, e essa luta deve ser apoiada e reconhecida não apenas pelo Estado, mas por toda a sociedade civil.

O testemunho como direito e política social

O Testemunho no sentido clínico vai muito além do sentido jurídico do campo do direito, em que tem seu significado muito associado a comprovação dos fatos ocorridos. Como um dispositivo clínico- político, o testemunho se configura enquanto um lugar de fala que tem uma potência no sentido da reparação psicológica e simbólica dos traumas sofridos, uma vez que busca criar espaço subjetivo para que se fale sobre o que não se podia falar e, neste sentido, inscreve na história um tempo suspenso pelos anos de repressão e silenciamento. É, deste modo, uma oportunidade de ressignificar e temporalizar aquilo que foi interditado pela censura, pela vivência da tortura e pelo acordo perverso de conciliação de uma história negada, buscando romper com a cadeia de repetição que mantém o horror das experiências vividas eternamente presente para aquele que a viveu. Uma tentativa, frágil, mas revolucionária, de possibilitar para aquele que se proponha a testemunhar a ativação de novos processos de subjetivação, de modo que possa encontrar novas formas de viver com a dor que carrega.

Para que seja possível dar contorno a esta experiência tão sensível, o testemunho ocorre quando há escuta, uma escuta que confere reconhecimento e acolhimento para o que for narrado, e que garanta condições de segurança e confiança ao sujeito que testemunha. Este dispositivo visa, neste sentido, trabalhar com a memória de uma experiência de violência que foi ocultada e negada, e para tanto torna necessário a criação de métodos de escuta e apoio que não reproduzam essa violência para o sujeito. Aquele que escuta precisa, portanto, estar disposto a mergulhar numa experiência de empatia, de sentir com o que fala, ainda que não tenha vivido a mesma experiência, de maneira que seja possível tecer uma rede simbólica de reconhecimento, visando também legitimar a realidade do que ocorreu. Como já foi dito anteriormente, o trauma se configura enquanto tal uma vez que o sujeito experiencia um excesso de angústia e se encontra fragmentado no seu processo discursivo não encontrando representação para transmitir a experiência vivida.

O testemunho pode vir a provocar no sujeito reações difíceis de entrar em contato em relação ao que se narra sobre momento vivido no passado, o que pode vir a aumentar uma angústia encoberta pelo silenciamento da experiência vivida. É um instrumento, neste sentido, complexo, que diz da sobrevivência da história e de suas múltiplas versões. Aqueles que sobrevivem a momentos muito difíceis da humanidade tem com o testemunho a oportunidade de re narrar o mundo em que vive e, assim, sobrevivê-lo quem sabe, tornando a história também um pouco mais viva em sua multiplicidade e nuances.

A potência da multiplicidade de versões sobre um acontecimento que o testemunho elucida traz à tona também a função reparadora do testemunho enquanto um ato que retira o sujeito de uma experiência única de primeira pessoa e o lança para um campo da coletividade. Sua existência não é isolada dos acontecimentos históricos e, portanto, também da existência de outros, o testemunho permite que todos ali presentes percebam que são responsáveis pelos atos narrados, uma responsabilidade de vivermos todos em sociedade, o que é diferente da culpa do agente que cometeu a violência. Possibilita, assim, a recuperação de uma integridade afetada pelo trauma, integridade que é por essência atrelada ao corpo social ao qual estão relacionados os acontecimentos históricos. Nesse sentido, o testemunho dispõe a costura entre diferentes histórias, gerando reconhecimento para a experiência única de cada sujeito.

A forma como a história será recuperada no testemunho irá depender do tempo subjetivo de cada pessoa, de sua trajetória e dos recursos psíquicos que dispõe para poder fazê-lo. O suporte social e institucional para a escuta também serão determinantes nesse processo, que deve ser cuidado de modo a considerar os diversos acarretamentos que ele suscita.

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