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Violência política no presente

Violência política no presente

Uma das evidências da continuidade da violência política é a violência policial, visto que o Brasil é o país com mais altos índices de letalidade e vitimização policial. O 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2023, revela que em 2021, 6.429 civis foram mortos por policiais e que 161 policiais foram mortos, a maioria deles fora de serviço.

Nesse sentido, o que ocorre é a atuação violenta das polícias, que segue tendo baixa ou nenhuma responsabilização pelos seus atos e violações de direitos. O fato de termos uma grande parcela da sociedade passível de ser morta sem que isto tenha maiores consequências aos agentes responsáveis pelo seu assassinato gera uma profunda desigualdade simbólica, que delimita quem merece um tratamento digno como ser humano e quem não. É nítida a diferença da gestão da violência nas áreas centrais e ricas das áreas periféricas. Em 2017, a TV UOL publicou uma matéria em que um coronel tenente da Rota, um batalhão de choque da Polícia Militar (PM) de São Paulo, afirmou que os policiais devem atuar e conversar com moradores de forma diferente dependendo do local da abordagem – em áreas nobres ou na periferia.

Este é apenas mais um dos indicativos de que a população que reside em favelas estão mais propensas a situações de vulnerabilidade social, muitas delas associadas às forças de segurança pública. Quem mora nas regiões consideradas “dominadas pelo crime” acaba recebendo o mesmo tratamento desumano que aqueles envolvidos em atividades criminosas, fenômeno conhecido e debatido no campo dos direitos humanos como criminalização da pobreza.

Depoimentos como o do coronel são corriqueiros. Philip Alston, relator da ONU, reproduz no relatório “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais Incluindo o Direito ao Desenvolvimento” a fala de um secretário de segurança pública do Rio de Janeiro: “‘um tiro em Copacabana [um bairro de classe média] é uma coisa.’ No entanto, ‘um tiro na Coréia, no Complexo do Alemão [duas favelas] é outra’”.

Estas são provas explícitas de que a conduta violenta da polícia é naturalizada nas periferias. Contudo, tratamentos desiguais surgem na vida de milhões de brasileiros de diversas formas, inclusive nas coisas mais cotidianas.  É comum escutar de meninos negros que eles devem andar com uma nota fiscal dobrada no bolso para não serem acusados pela polícia de terem roubado o celular ou tênis que usam. São os jovens negros os mais perseguidos pela polícia e tratados como alvo de uma violência política que pode ser equiparado a como o Estado atuava de forma violenta durante o regime militar, ainda que em termos numéricos as vítimas de hoje em dia ultrapassem exponencialmente aquelas afetadas durante o período ditatorial.

Entre fatos marcantes que explicitam a violência de Estado após a ditadura, está o massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, causou a morte de 111 detentos. Outro momento bastante reconhecido, graças à resistência das mães dos jovens assassinados, foram os Crimes de Maio de 2006, que somaram mais de  564 mortes e 110 feridos por armas de fogo, no período de 12 a 26 de maio, no Estado de São Paulo, principalmente na capital e sua região metropolitana e na Baixada Santista.

Nesta ocasião, ocorreu uma guerra declarada entre as forças de segurança do Estado e o Primeiro Comando da Capital (PCC), na qual as vítimas foram, em sua maioria, homens, negros e jovens. Entre os afetados nos crimes de Maio,  a cada morte de um agente público, ocorreram 8,6 mortes de civis, e 94% dessas vítimas não tinham qualquer antecedente criminal. Entre esses sujeitos, 96% eram homens, 63% jovens de até 25 anos, e mais da metade do total de afetados pelos crimes eram negros.

Formas de resistência e a luta por reparação

Rebatendo o afronte do Estado em não tratar os crimes e seguir duplicando suas taxas seletivamente racistas e desiguais, surgem movimentos daqueles afetados diariamente, que representam uma importante luta para toda a sociedade em relação à dívida do Estado de tratar sobre esses crimes. Entre eles está o movimento Mães de Maio, criado em 2006 para encabeçar a luta de mães que perderam seus filhos nos crimes de Maio, chegando a ser premiado, em 2013, na 19ª edição do prêmio de Direitos Humanos, pela então presidenta Dilma Roussef.

Contudo, taxas semelhantes de violência continuam a ser registradas. Segundo o Atlas da Violência de 2021,

“no Brasil a violência é a principal causa de morte dos jovens. Em 2019, de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos que morreram no país por qualquer causa, 39 foram vítimas da violência letal. Entre aqueles que possuíam de 20 a 24, foram 38 vítimas de homicídios a cada 100 óbitos e, entre aqueles de 25 a 29 anos, foram 31. Dos 45.503 homicídios ocorridos no Brasil em 2019, 51,3% vitimaram jovens entre 15 e 29 anos. São 23.327 jovens que tiveram suas vidas ceifadas prematuramente, em uma média de 64 jovens assassinados por dia no país.”

E ainda, armas de fogo são o principal instrumento utilizado em homicídios de mulheres fora das residências, 54,2% dos registros, enquanto nos casos dentro das residências foi 37,5%. 

“Nos últimos anos a discussão sobre a flexibilização do acesso às armas de fogo ganhou evidência no Brasil com a ascensão de grupos políticos conservadores da extrema direita. Desde 2019, já foram editados mais de trinta instrumentos, dentre os quais se destacam decretos, portarias e projetos de lei, que objetivam ampliar o acesso da população às armas e munições”.

Segundo o Anuário, foram 47.742 mortes violentas intencionais em 2019 e 50.033 em 2020. O atual estágio da história brasileira é marcado pela radicalização de debates e intensa polarização política, com efeitos na banalização da vida. Dessas mortes violentas intencionais, 76,9% foram de pessoas negras, 50,2% possuíam entre 12 e 29 anos e 91,4% eram do sexo masculino.

As altas taxas de mortalidade de jovens negros reiteram o que movimentos sociais denunciam como um genocídio da população negra e periférica. Este genocídio foi denunciado pelo Movimento Negro ainda nos anos 90, quando a tendência do Brasil era aderir ao projeto neoliberal, que tem como consequência uma intensificação da exclusão social. É possível encontrar uma proposta da Escola Superior de Guerra do Exército Brasileiro que apontava para uma contenção numérica da miséria, não no sentido de apresentar políticas públicas, mas de promover políticas de extermínio a esses setores da população: “Executivo, Legislativo e Judiciário poderão pedir o concurso das Forças Armadas para neutralizar essa orla de bandidos, matá-los e destruí-los”. Este projeto se manifesta nos dados a cada ano, enquanto a taxa de mortalidade de negros continua a aumentar.

Em termos de sofrimento psíquico, o genocídio da população negra pode ser associado ao que muitos estudiosos apontam como luto impedido para os familiares das vítimas, que são também violentados ao não ter seu sofrimento reconhecido socialmente e pelo Estado. Portanto, os crimes contra esses jovens produzem tanto mortes diretas como perpetuam a violência política sob diferentes formas de violência aos familiares. Um familiar que tem um ente morto sem que isto cause reverberações no mundo a sua volta, que não tenha um reconhecimento institucional do Estado de que aquela morte não devia ter ocorrido, por consequência, não pode ser acolhido em sua perda e até falar a respeito dela.

Em um processo semelhante aos combatentes da primeira guerra, ou aos familiares de vítimas do regime militar, as palavras não são suficientes, o que torna o processo de luto mais difícil, visto que ela é interditada em seu processo simbólico. Neste mesmo sentido, outro resquício da ditadura que continua a operar na gestão das mortes das pessoas é a lei criada naquele período para facilitar a ocultação de cadáveres. Segundo a Lei nº 7.017/1967, para ser enterrado como um indigente basta que em 72 horas nenhum familiar reclame o seu corpo, mesmo que a pessoa carregue um documento de identificação. Ainda que modificações tenham sido feitas, o procedimento continua sendo muito semelhante.

No início da década de 2000, período também marcado por altos índices de violência nas periferias, os distritos Capão Redondo, Jardim São Luís, e Jardim Ângela foram identificados como “triângulo da morte”, região com as maiores taxas de violência do mundo. Nesses territórios, importantes movimentos sociais contribuíram e seguem contribuindo para estratégias de proteção à juventude e a população mais afetada. Desde 1992, acontece a “Caminhada pela Paz”, importante evento que reúne ativistas locais e da cidade na região do Jardim Ângela, que se ampliou em outras ações, como no “Fórum em Defesa da Vida”, o qual realiza a gestão de diferentes atividades sociais com o apoio de parcerias da sociedade civil e setores da igreja católica comprometidos com as camadas populares, muito influenciado pela luta das comunidades eclesiais de base no enfrentamento à ditadura nas periferias.

São muitos os movimentos sociais que atuam no enfrentamento ao alto índice de violência nas periferias, em especial contra jovens negros. Ocorrem, por exemplo, na cidade de São Paulo, reuniões em todas as regiões da cidade entre ativistas, familiares, profissionais de serviços públicos na estratégia de fortalecer uma “Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio”, que busca garantir o acesso a serviços públicos (do Estado ou de coletivos e organizações não governamentais) que promovam reparação psicológica, simbólica e material aos afetados pela violência política.

Uma das tentativas da rede de proteção é garantir o acesso das vítimas à justiça, buscando se organizar fazendo pressão às tentativas do Estado em faltar com sua função de proteção aos direitos básicos. Exemplo de um serviço público que pode ser acessado pela população jovem e negra em caso de perseguição política e risco de morte é o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM) que  protege crianças e adolescentes expostos a grave ameaça no Estado, podendo ser estendida a jovens de até 21 anos, quando egressos do sistema socioeducativo, desenvolvido em conformidade familiar, não sendo vinculado à colaboração do protegido em inquérito policial ou processo criminal. Quando necessário, o programa inclui o núcleo familiar do ameaçado.

Além das formas pelas quais a violência da polícia gerencia que vidas são importantes e quais pessoas são assassinadas sem maiores repercussões, vemos a violência política nos dias atuais em outras esferas, como na saúde, educação e assistência social. A violência de Estado se materializa não só ao fazer uso ostensivo da força policial, mas ao negar a garantia de acesso aos direitos básicos e ao sistema de justiça.

Isto se expressa também na progressiva deterioração dos serviços públicos e benefícios sociais. Em um cenário de serviços públicos sucateados, aqueles que têm condições econômicas pagam um serviço privado. O censo do IBGE de 2021 é claro ao delinear quem pode e quem não pode ter acesso a esses serviços: o rendimento médio domiciliar per capita da população branca, de R$1.866, era quase o dobro do verificado para a população preta (R$964) e parda (R$945), diferença que se mantém desde o início da série histórica, em 2012. 

Reconhecendo que a violência política se expressa não só de maneira direta, como nos assassinatos e torturas pelas forças policiais, mas de diversos outros modos simbólicos, foram criados Centros de Estudo de Reparação Psíquica (CERP), apoiados pelo Fundo Newton e vinculados ao Clinicas do Testemunho,  que atuavam, principalmente, relacionando a violência do período ditatorial com a violência dos dias atuais, através de trabalhos de formação para profissionais da rede pública de assistência social e saúde.

Vemos aqui uma tentativa não só de conectar o trabalho de reparação psíquica aos afetados pela ditadura com as políticas públicas duradouras já desenvolvidas na saúde e assistência social, procurando evitar tanto que o Clínicas do Testemunho fosse apenas um projeto esporádico e isolado de reparação, mas evitava que ele fosse descontextualizado em relação à violência política. O cuidado usualmente oferecido às vítimas da violência política geralmente não leva em conta o cenário político e social daquele sofrimento. Se um trabalhador sofrendo com o desemprego e condições precárias de vida de sua família adquire um distúrbio cardiológico, ao ir ao posto médico ele não vai encontrar nenhum tipo de reparação à essa violência, apenas terá seu sintoma diagnosticado da forma mais limitada possível e, provavelmente, sairá do consultório com a receita de uma medicação para hipertensão.

O modo como muitos serviços públicos estão estruturados corrobora para que a violência política seja perpetuada, ao invés de ser um refúgio para a população. Isto ocorre quando na educação são escolhidos temas para as aulas que são desconectados da vida do jovem aluno, quando devido às pressões dos gestores, o profissional da saúde está mais preocupado em atender um número alto de usuários do serviço do que com a qualidade do atendimento, quando o profissional da assistência social tenta convencer um rapaz negro que se ele andasse com “roupas melhores” seria menos abordado pela polícia, etc.

É um ato de resistência desses profissionais lutar para que seu serviço não seja violento com os usuários que atendem. Os próprios profissionais também sofrem com suas condições de trabalho, que encontram-se em alta demanda e casos graves. Um fator que se observa como um dos maiores causadores de sofrimento para estes profissionais é a falta de espaço de cuidados no ambiente de trabalho, entre eles, espaços de supervisão e escuta.

Reparação em sentido amplo 

Considerando o percurso que foi apresentado sobre o histórico recente de políticas de reparação, vemos que uma reparação à violência política deve ser entendida de maneira ampla. Ela demanda reconhecimento institucional do Estado, mas pede o reconhecimento em outras esferas, como da sociedade civil. Esse processo se beneficia de ações afirmativas, como cotas raciais ou as indenizações fornecidas aos anistiados políticos, mas pedem o direito à justiça e a garantia de que as violências semelhantes parem de ocorrer.

Somado a isto, está a proposta de que é importante levar em conta a reparação psíquica das pessoas envolvidas. Não apenas pelo motivo óbvio, muitas vezes negligenciado, de que as pessoas que sofreram atos de violência apresentam alto grau de sofrimento psíquico e merecem receber o cuidado adequado, mas porque o trauma implica uma reprodução daquela violência ao longo da história. Desta forma, as ações de reparação que não levam em consideração como a violência política atua na subjetividade das pessoas, tem seus efeitos muito mais limitados.

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