A significativa colaboração da perícia com a violência de Estado do período da ditadura levou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) a incluir, no seu relatório final, a recomendação de desvincular os institutos médicos legais e órgãos de perícia criminal das secretarias de segurança pública e das polícias civis (recomendação 10). Assim, a CNV avança em relação às propostas de autonomização da perícia oficial ao recomendar ao Estado brasileiro a dissociação radical da estrutura da segurança pública da organização administrativa dos órgãos periciais.
Recomendação semelhante já havia sido feita em 2009, no Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, conhecido como PNDH-III. Na diretriz 11, que versa sobre a “Democratização e modernização do sistema de segurança pública”, o Plano destaca como ações programáticas a serem implementadas: “Assegurar a autonomia funcional dos peritos e a modernização dos órgãos periciais oficiais, como forma de incrementar sua estruturação, assegurando a produção isenta e qualificada da prova material, bem como o princípio da ampla defesa e do contraditório e o respeito aos Direitos Humanos.”;
“Propor projeto de lei para proporcionar autonomia administrativa e funcional aos órgãos periciais federais.”
Assim, a CNV, na recomendação 10 do seu Relatório Final, reitera o que já fora proposto alguns anos antes pelo PNDH-III, ressaltando que a segurança pública, em geral, e a perícia oficial, em particular, são campos de máximo interesse para a efetivação dos direitos humanos no País.
Com essas recomendações, o Estado brasileiro pretende garantir o máximo possível a imparcialidade dos laudos técnicos, sobretudo em situações nos quais o próprio Estado é suspeito dos crimes, como costuma ocorrer nos casos de graves violações aos direitos humanos. Por isso, a CNV recomenda “a criação, nos estados da Federação, de centros avançados de antropologia forense e a realização de perícias que sejam independentes das secretarias de segurança pública e com plena autonomia ante a estrutura policial, para conferir maior qualidade na produção de provas técnicas, inclusive no diagnóstico de tortura”.
Foram os centros independentes de antropologia forense que serviram de modelo para a CNV na sua recomendação 10. Na América Latina, a criação de equipes de antropologia forense, por volta do início da década de 1980, coincide com a abertura dos regimes ditatoriais e com os esforços investigativos, realizados por comissões de familiares ou por órgãos de Estado, para localizar e identificar restos mortais de desaparecidos em razão do seu engajamento político.
As equipes independentes de antropologia forense são uma resposta a um duplo problema que emerge nesse contexto político: primeiramente, os órgãos oficiais de perícia colaboraram ativamente com as violações de direitos humanos perpetradas pelas ditaduras latino-americanas, o que evidentemente tornava no mínimo suspeita sua atuação em casos que envolveram a atuação de agentes do Estado. Além disso, os peritos médicos e odontolegistas tinham pouca formação para realizar exumações e análises esqueléticas, para as quais esses profissionais buscavam ajuda de especialistas, sobretudo nas áreas de Antropologia física e de Arqueologia.
A Argentina foi o país latino-americano pioneiro na formação de uma equipe pericial independente: a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), criada em 1984, a partir dos ensinamentos do antropólogo forense estadunidense, Dr. Clyde Snow, chamado para formar profissionais para atuar na análise de centenas de esqueletos que poderiam ser dos milhares de desaparecidos da ditadura argentina (1976-1983).
Impulsionados pelo exemplo argentino, outros países formaram suas próprias equipes, como o Grupo Chileno de Antropologia Forense (1989), a Equipe de Antropologia Forense da Guatemala (1992), a Equipe Peruana de Antropología Forense (2001), entre outras. Aqui no Brasil, em 2014, foi criado o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, da Universidade de Federal de São Paulo (Unifesp), que abriga os antropólogos forenses e peritos oficiais do Grupo de Trabalho Perus (GTP), responsável pela análise e identificação dos restos mortais exumados da Vala Clandestina do Cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus, em 1990.
Na América Latina, os antropólogos e arqueólogos forenses, diferentemente dos seus colegas estadunidenses e ingleses, que recebiam sólida formação teórica nas universidades, possuíam muito mais experiência em campo, devido às exumações maciças e às perícias de grande número de restos mortais que eram chamados a executar para a elucidação dos crimes cometidos pelos governos ditatoriais na região.
Além disso, estes especialistas estabeleciam íntima e permanente relações com os familiares das vítimas, o que lhes permitiu integrar à análise técnico-científicas dos restos mortais com abordagens que levassem em conta as dimensões psicológicas, culturais, históricas e políticas envolvidas nos diferentes contextos em que trabalhavam. Nesse sentido, as perícias dos arqueólogos e antropólogos forenses desempenharam e desempenham um duplo papel: esclarecer a verdade sobre os fatos e tentar realizar a identificação das ossadas, além de reparar simbolicamente os familiares da ausência de atenção anterior do Estado aos entes queridos que foram assassinados e desaparecidos.
Pesquisas realizadas por antropólogos forenses podem ser consideradas verdadeiros trabalhos de construção da memória social a respeito das vítimas de desaparecimento e outros tipos de violência. Frequentemente, durante as investigações, os peritos recolhem notícias, fotos, filmes e exames clínicos da pessoa desaparecida. Todo este material pode ser entregue aos familiares, ajudando-os a compor parte de histórias fragmentadas e interrompidas pelas ditaduras.