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A redemocratização e as mudanças na segurança pública brasileira

A redemocratização e as mudanças na segurança pública brasileira

Desde a década de 1980, parte da sociedade brasileira acompanhou o processo de democratização de suas instituições. Após um período de consultas públicas e debate entre sociedade civil organizada e setores estatais, durante a Assembleia Nacional Constituinte, houve a elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Neste trabalho de transição, os movimentos sociais tiveram certo êxito, mesmo que parcial, ao condensar demandas díspares para a inclusão de direitos sociais e culturais de grupos marginalizados, política e socialmente.

A nova Constituição trouxe várias inovações, restabeleceu os direitos políticos das pessoas, possibilitou o surgimento de partidos políticos, eliminou a barreira do voto aos analfabetos. Também ampliou, de maneira significativa, os mecanismos de participação da sociedade civil na esfera estatal, criando instâncias decisórias sobre a formulação de políticas públicas com participação da sociedade civil. Entretanto, as transformações em relação às instituições policiais foram poucas. Na década de 1990, os novos episódios de violência policial e tortura em delegacias tornaram-se mais evidentes, mostrando à sociedade brasileira como seria difícil democratizar a polícia no país.

Mudanças pouco significativas na função da polícia

Com a Constituição de 1988, a repressão policial e a tortura amplamente praticada durante o regime político militar foram criminalizadas. A participação democrática foi institucionalizada, garantindo-se direitos políticos e direitos sociais, o que motivou a luta e a pressão dos movimentos sociais para a efetivação e expansão dos direitos conquistados e da garantia de acesso à justiça a todos os segmentos da população.

No entanto, a segurança foi a área do serviço público que, possivelmente, tenha progredido menos em termos democráticos. A Constituição Democrática de 1988 não trouxe mudanças significativas para as instituições da segurança pública, com exceção da modificação nominal e simbólica do papel da polícia. De acordo com a Carta Constitucional, a PM não deveria mais agir pautada na “segurança nacional”, e sim com os pressupostos de uma segurança pública; ela não deveria mais ter a função de proteger o Estado, ganhando a nova atribuição de proteger os cidadãos. Entretanto, tal mudança, nos termos da Constituição, não representou uma ruptura nos modos como essas instituições atuavam. 

A imutabilidade do campo da segurança pública pós-ditadura militar muito se deve ao alijamento da sociedade civil e especialistas no tema no envolvimento das discussões sobre as questões de segurança pública e reforma policial durante a Constituinte. Durante a Constituinte, a sociedade civil se manteve no papel de denunciante dos casos de violações de direitos humanos ocorridas na época da ditadura. Todavia, para mudar as formas como as polícias agiam, era necessária uma interação entre a sociedade civil e elementos progressistas das polícias, algo que não ocorreu, dada a tensa relação entre polícia e população naquele momento.

Dessa forma, a influência de setores de direita da política brasileira foi facilitado, contribuindo para que se apropriassem do campo da segurança pública e fizessem valer as propostas conservadoras que reservavam para ele, no âmbito da Constituinte. As poucas transformações democráticas realizadas no campo da segurança pública brasileira podem ser vistas, em parte, como resultado da dificuldade dos atores políticos da Constituinte de lidarem com o tema da segurança pública e darem um significado à questão, para além do abandono do termo segurança nacional.

Segurança pública e violência policial nos anos de 1990 

No período democrático, algumas experiências pontuais com modelos alternativos de policiamento comunitário foram aplicadas. Mas, no geral, a polícia brasileira permaneceu organizada segundo os pressupostos do ultrapassado modelo de policiamento do período ditatorial. A Polícia Civil e a Polícia Militar continuaram responsáveis pelo controle do crime, num ciclo policial repartido: o policiamento ostensivo continuou sob a responsabilidade da PM e a polícia judiciária (apuração dos crimes) ficou sob a responsabilidade da Polícia Civil.

Nos anos de 1990, a segurança pública tornou-se um problema social que preocupava a todos, passando a ocupar o espaço público por intermédio de atores sociais variados e de entes institucionais. Desde aquele momento, a sociedade brasileira passou a viver períodos de intensificação da criminalidade urbana e da violência, e os números de crimes violentos cresciam a cada dia.

Como resposta, a polícia intensificou sua maneira usual de atuar nas abordagens policiais e nas operações. No entanto, isso não contribuiu para aumentar o sentimento de segurança da população. De um lado, as pessoas se viam reféns da criminalidade urbana, de outro, estavam assustadas com aquele modelo de atuação policial, marcado por abordagens truculentas, invasão de residências para busca de suspeitos, ou ainda pelas mortes cometidas por policiais durante o cotidiano de repressão ao crime.

A violência policial dos anos de 1990 foi tomada como evidência da dificuldade das instituições policiais em incorporar valores de respeito aos direitos individuais. Também era apontada como um entrave à consolidação da democracia brasileira. Trata-se de um período marcado pela persistência das práticas violentas e arbitrárias da polícia em face ao crescimento da violência urbana e pela impermeabilidade das forças policiais às reformas e controles externos.

Na década de 1990, ocorreu um episódio de extrema violência policial que ficou conhecido como o Massacre do Carandiru. O complexo penitenciário do Carandiru, localizado na cidade de São Paulo, vivia tempos de superlotação e déficit de vagas em razão do crescimento da população prisional. Na época, era comum se referirem ao Carandiru como uma “bomba” prestes a explodir dentro do perímetro urbano de São Paulo. Foi o que ocorreu no dia 2 de outubro de 1992, quando uma rebelião dos presos, que ganhou repercussão na mídia sendo transmitida ao vivo, foi duramente reprimida pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, a pedido do governador, Luiz Antônio Fleury Filho. O episódio resultou na morte de 111 presos. Nenhum policial foi vitimado.

Em 2016 o Tribunal de Justiça de SP anulou os julgamentos que condenaram 74 policiais militares pelo massacre do Carandiru. A impunidade em relação aos desdobramentos do ocorrido, a implosão do complexo Carandiru e a expansão das unidades prisionais pelo interior do estado marcaram as políticas de controle do crime paulista nos anos seguintes.

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