O século XX foi marcado por uma sucessão de violências, entre duas grandes guerras mundiais, muitos massacres, genocídios, bombas atômicas que provocaram sérios traumas nas sociedades pós-guerra e produziram modos de vida marcados pelo medo, desconfiança e polarização entre grupos sociais. A temática da Reparação Psíquica passa a ter lugar nas discussões e práticas dos direitos humanos no momento em que as sociedades se veem marcadas por atos que ferem a dignidade de determinados grupos, gerando efeitos que podem ser sentidos no corpo, nas famílias, nas instituições sociais, mesmo muito tempo depois dos acontecimentos que os suscitaram.
Muitas das sociedades marcadas por esses tipos de conflitos recorreram a trabalhos de restituição de laços e pactos sociais para lidar com os traumas sofridos, o que envolveu recuperar as experiências de dor, torturas, opressão, espólio e miséria a que foram submetidos aqueles perseguidos pelos regimes de poder vigentes. Este tipo de trabalho permitiu que fossem desenvolvidas ações, dispositivos e estudos que compõe as diretrizes do que ficou conhecido como Justiça de Transição, uma espécie de caixa de ferramentas sociais que busca efetivar a transformação de sociedades pós-conflito para um modo de vida que esteja em acordo com os direitos humanos com a garantia de que todos os que vivem em uma sociedade democrática e justa, possam conviver harmonicamente.
Violência Política
Na sociedade brasileira, marcada pelo esquecimento e apagamento de seus traumas sociais, as ações de reparação encontram sérias dificuldades e têm pouco alcance, levando em conta a quantidade de vítimas dessa violência política que produz traumas desde a escravidão. A ditadura civil-militar que vigorou através do golpe de 1964, ainda que pouco elaborada socialmente, é o marco histórico mais reconhecido quando falamos de ações e projetos amplos de repressão e violência que produziram sérios danos para a sociedade. Considerando isto, o Estado Brasileiro, a partir da década 2000, promoveu ações na tentativa de buscar uma reparação material, simbólica e psicológica dentro dos parâmetros da Justiça de Transição.
A reparação, nestes termos (material, simbólica e psicológica), se mostra importante porque a violência política não ocorre apenas em atos de agressões, mas em atos sutis e simbólicos também. É por representar essas diversas formas de opressão que se opta pelo termo violência política e não violência de Estado, visto que, se o Estado é parte fundamental neste processo, não é somente através dele que essa violência histórica e política se reproduz em nossa sociedade.
Esta violência se manifesta de modos materiais, em agressões, torturas, assassinatos, perseguições ou até mesmo demissão de um emprego, e de modos simbólicos e psicológicos, através de opressões sobre uma cultura, como no racismo, e no sofrimento, como o gerado pelo trauma, uma marca psíquica de um evento violento que repercute ao longo da vida de uma pessoa e através de gerações.
O Direito à Reparação nos marcos da Justiça de Transição, pode ser entendido como a oferta do Estado de reparação material e psicológica, a garantia de verdade e memória e a reforma das instituições estatais, que deve reconhecer os crimes que cometeu e transformar as estruturas que seguem reproduzindo esses crimes sob a lógica da violência política. Esta última tem como alvo aqueles que são considerados opositores ao regime.
O que é o trauma
Do ponto de vista da saúde mental, uma experiência não é em si traumática ou não. Por mais que uma experiência seja violenta, é o modo como ela se relaciona com a subjetividade daquela pessoa que determinará o quão traumática ela será. Isto explica, em partes, porque um mesmo acontecimento pode causar efeitos diferentes em pessoas distintas que o sofreram, por exemplo, duas pessoas envolvidas em um mesmo acidente de carro podem apresentar efeitos diversos, uma delas pode se encontrar melhor após algumas semanas, enquanto a outra talvez desenvolva um medo de voltar a dirigir e permaneça com ele por muito tempo.
Há eventos que são mais propensos a configurar uma experiência traumática, como a tortura, situações de guerra, abusos sexuais, a morte de uma pessoa querida, a descoberta de uma doença grave e a perda de sua casa por um desastre natural. Todos esses acontecimentos têm um potencial traumático porque podem significar um contato desprotegido com a angústia que não consegue ser amortecida o suficiente para ser interpretada, simbolizada ou rejeitada – elaborada de algum modo – como em outros momentos mais cotidianos nos quais lidamos com a angústia de forma mais eficaz, por exemplo, quando o bebê sente a falta de sua mãe, uma criança vai ao seu primeiro dia de escola, quando alguém se perde em uma região que desconhece, ou sempre que lidamos com escolhas e com o contato com o desconhecido. Uma experiência que introduz um contato excessivo com a angústia é o que vai caracterizar o que chamamos de trauma, mas o que vai definir se este contato é excessivo ou não é a nossa própria subjetividade, ou seja, nossa percepção presente e passada da situação conflituosa que vivemos.
Clínicas voltadas aos cuidados dos traumas e sofrimentos, tiveram início com o retorno dos combatentes da primeira guerra mundial, afetados pelo horror produzido pelo que haviam vivenciado. Naquela época, tais pacientes se mostravam desafiadores porque apresentavam mais acentuadamente um problema que já era observado em outros casos mais comuns: tendiam a, repetidamente, cometer os mesmos erros, fazer escolhas e ações que pareciam querer manter o quadro de sofrimento ao invés de procurar uma melhora.
O trauma impõe uma série de sintomas como pesadelos, insônia, sensação de perigo constante e repetição de pensamentos e imagens que retomam os sofrimentos da cena traumática, como um instante no tempo que teima em não terminar – em não poder ser superado. Mas o trauma não é somente uma experiência de repetição do sofrimento, ele também apaga experiências, numa tentativa de se ver livre da situação traumática original. Nesses casos, geralmente, a pessoa esquece as memórias relacionadas àquele fato, passa a viver como se aquilo não tivesse ocorrido, numa esperança inconsciente de que, ao não se lembrar mais que sofreu aquele ato de violência, ele seria superado. Entretanto, este não é um esquecimento real, porque aquelas lembranças continuam a atuar, mesmo que inconscientemente, na vida daquele sujeito, aparecendo nas mais diversas e contraditórias formas de sofrimento. Conseguir superar é um passo fundamental e decisivo para a reparação de um trauma, mas para que isso seja possível se faz necessário um trabalho de elaboração anterior.
Os combatentes da Primeira Guerra eram incapazes de narrar o que haviam visto no campo de batalha. Quando faltam palavras, um silêncio é imposto e muitas vezes é reforçado com a típica frase “é melhor não tocar nesse assunto” ou “é melhor virar a página”. Acontece que quando uma pessoa não vive essa “página” da sua vida, pode ter mais dor e sofrimento, tendendo a repetir a história.
Para entender esta repetição, é necessário ter em mente que somos constituídos socialmente pelo o que é valorizado em nossa cultura. Estes valores podem ser transmitidos de forma explícita ou de formas mais sutis, quase imperceptíveis, mas que vão sendo reforçadas no dia a dia. Os traumas não elaborados na história de nossa família e de nosso país também são transmitidos para nós. Assim, vemos que nosso passado escravagista ainda faz com que a ideia de que ter uma empregada doméstica que mora em sua casa e trabalha dia e noite, sem folgas ou vida social, seja algo aceitável, ou a ideia de que uma pessoa negra é menos capacitada para uma atividade é algo comum. O nosso passado ditatorial ainda retorna na concepção de que às vezes é aceitável passar por cima da Constituição para manter a “ordem”, ou de que torturar uma pessoa pode ser uma boa forma de conseguir provas para “prevenir crimes”.
Este processo de repetição da situação traumática também se relaciona como o modo pelo qual ela foi reconhecida. Caso os agentes que cometeram tais violações de direitos não sejam responsabilizados e o sofrimento decorrente de tais atos não sejam reconhecidos, estas histórias de sofrimento passam a ser vistas enquanto uma mentira, não existentes ou até aqueles que o sofreram foram, na verdade, os responsáveis pelo próprio sofrimento — raciocínio encontrado em argumentos como “só foi torturado e morreu quem era criminoso”.
A escuta do testemunho
Podemos extrair dessas linhas gerais que a reparação desses traumas envolve diversos níveis de reconhecimento. Envolve um reconhecimento pessoal, através do singular de cada um, já que cada pessoa deve elaborar como os acontecimentos se relacionam com sua história de vida. Envolve o reconhecimento social em diversas instâncias, no plano das relações afetivas, quando as pessoas das quais eu me importo reconhecem meu sofrimento; no plano das relações comunitárias, quando a sociedade civil consegue elaborar sua história e inclui o que foi aprendido como educação política das próximas gerações; também no plano institucional, demandando do Estado ações públicas de reparação, legitimação e responsabilização do que foi cometido. Vemos, de tal maneira, que crimes que são cometidos no âmbito público e coletivo também demandam um trabalho de reparação que atue nessas esferas, e não apenas de modo individual e privado, para que tais violências sejam reconhecidas socialmente. Sendo assim, a reparação não seria uma dissolução total do sofrimento, ou uma anulação de todas as violência cometidas — há algo desse sofrimento que nunca se vai —, mas é uma reparação voltada para o futuro, que envolve garantir condições para viver àqueles que foram afetados e também a implicação de cada parte naquilo que foi responsável, um compromisso, apoiado na promoção da memória, de que os eventos traumáticos não voltem a ocorrer.
O testemunho, ato que nomeia o projeto Clínicas do Testemunho, é um dispositivo que atua em diversos destes pontos. Ao fazer um testemunho público de seu sofrimento, em um ambiente de cuidado propício a recebê-lo, a história transmitida pela pessoa que foi afetada pela violência de Estado produz diversos efeitos. Ao narrar seu sofrimento para os outros, há a possibilidade de acolhimento por parte daqueles que o escutam, mas há outro efeito que vai além, aqueles que escutam o testemunho podem reconhecê-lo como parte de si, não só porque podem se imaginar numa situação de vulnerabilidade, como a narrada, mas por se perceberem responsáveis por aquele ato de violência. Responsáveis não porque foram eles a executar a ação que violentou aquela pessoa, mas por fazerem parte de uma sociedade que permitiu que aquilo fosse possível. Neste sentido, a escuta é chave para poder dar existência ao testemunho, entendendo que, ao escutar um testemunho, em certa medida pode se tornar aquele que escuta testemunhos também.