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O Massacre do Carandiru e o Primeiro Comando da Capital

O Massacre do Carandiru e o Primeiro Comando da Capital

Dois projetos políticos penitenciários confrontaram-se durante o período da transição democrática. Um deles propunha o diálogo e a criação de canais de comunicação entre a prisão e a sociedade, representado por setores sociais mais progressistas, proposto durante o governo de Franco Montoro.

O outro projeto, defendido por setores mais conservadores, alinhados com o governador Orestes Quércia e seu secretário de Segurança, Luiz Antônio Fleury Filho, partia do pressuposto de que a questão prisional era apenas caso de polícia, ou seja, as crises no sistema prisional deveriam ser geridas por meio da intervenção violenta da Polícia Militar.

Em 1991, ao suceder Quércia no governo do Estado de São Paulo, Fleury Filho intensificou o intervencionismo militar nas unidades prisionais e transferiu a administração prisional da Secretaria de Justiça para a Segurança Pública.

Essa política provocou uma escalada da violência policial nas ruas e prisões. Com Fleury no governo, a Polícia Militar matou civis em um crescente sem precedentes, especialmente entre 1991 e 1992, como mostra o quadro abaixo. Em 1989, 18 presos morreram asfixiados no 42º Distrito Policial. Essas mortes foram um prenúncio do que estava por vir: o Massacre do Carandiru.

Há distintas versões sobre o massacre que ocorreu no dia 02 de outubro de 1992, no presídio do Carandiru, em São Paulo. Muitas delas insistem que a confusão no presídio teve início com uma briga trivial entre dois presos, conhecidos como Barba e Coelho, no Pavilhão 9. Grupos rivais se aproveitaram da confusão para realizar um acerto de contas e, por volta das 14 horas, alguns feridos foram levados para a enfermaria, no Pavilhão 4. Pouco depois, a situação já estava totalmente fora de controle e os agentes penitenciários abandonaram o pavilhão, que estava tomado. Anunciava-se, assim, uma rebelião, com os presos ateando fogo em colchões e outros objetos. O diretor do presídio, José Ismael Feitosa, pediu reforço policial e, em alguns minutos, o Comandante do Policiamento Metropolitano, coronel Ubiratan Guimarães, chegou ao complexo prisional. Por ordem do secretário estadual de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos – que deixaria o cargo menos de um mês depois do ocorrido –, o coronel Ubiratan assumiu a situação 

Por volta das 16h30, o Coronel Ubiratan ordenou a invasão do Pavilhão 9 e a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) – tropa conhecida por sua alta letalidade – à frente de outras tropas da Polícia Militar, como o COE (Comando de Operações) e o GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), entrou no local. Segundo a versão da polícia, os policiais foram recebidos por presos, que estavam protegidos atrás de uma barricada, armados com estiletes, facões e armas – embora nunca tenha sido provado que as armas pertenciam ou foram usadas pelos presos. De acordo com algumas versões da defesa dos presos, estes já haviam se rendido antes da invasão, sendo que os facões e outras armas tinham sido jogados pela janela para sinalizar a rendição. Nesse caso, registra-se que os presos estavam aglutinados e desarmados nas celas quando a ROTA entrou e liderou a execução. O laudo da perícia concluiu que aproximadamente 70% dos disparos haviam atingido as regiões da cabeça e do tórax das vítimas – o que confirma a tese de extermínio e não de enfrentamento.

Minutos após a invasão, a polícia abandonou o presídio levando feridos. Aqueles que sobreviveram à invasão receberam ordens para sair de suas celas e descerem nus para o pátio do pavilhão, onde ficaram, por horas, sentados de cabeça abaixada para que não reconhecessem os policiais. Também foram obrigados pelos policiais a carregarem os cadáveres dos presos mortos para o primeiro andar do pavilhão. Há relatos de outras execuções de presos durante a realização dessas ações ordenadas pelos policiais. Os números oficiais dão conta de 111 presos assassinados, mas há denúncias da existência de muitas outras mortes que não foram contabilizadas.

Nesse massacre, um verdadeiro extermínio, que muitas vezes é justificado como enfrentamento necessário à rebelião que estava em curso, nenhum policial foi morto ou ferido.

Como as mortes ocorreram às vésperas das eleições municipais, o governo só divulgou que havia mais de 100 mortos no dia seguinte, alguns minutos antes da conclusão da votação. A notícia de que ao menos 111 pessoas haviam sido assassinadas pela Polícia Militar, repercutiu imediatamente. Grande parte da sociedade brasileira, entre os quais formadores de opinião e jornalistas, condenou os atos do governo que culminaram com o massacre e a comunidade internacional exigiu explicações.

Mais de 80% dos mortos estavam aguardando julgamento (o que significa que eram formalmente inocentes) e muitos outros eram réus primários.

A invasão dos policiais no Carandiru contou com a anuência dos juízes que estavam presentes no local. A entrada foi autorizada pelo Governo de São Paulo, mas o governador, seu vice e o secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, jamais foram responsabilizados. No entanto, para se eximir de responsabilidade pelo massacre, eles sempre argumentaram que houve um rompimento da cadeia de comando, gerada por incidente ocorrido com o protagonista dos atos, o coronel Ubiratan Guimarães, comandante do policiamento metropolitano à época e líder da invasão.

Somente 20 anos mais tarde, entre 2013 e 2015, ao menos 74 policiais foram condenados por júri popular pelas mortes. Tal condenação se deu, em larga medida, em resposta à incessante e insistente luta de defensores de direitos humanos para que houvesse justiça. No entanto, em 2016, o Tribunal de Justiça (TJ) anulou o processo, e um dos desembargadores chegou a declarar que, por ele, os réus policiais seriam absolvidos.

Em 2002, o coronel Ubiratan Guimarães foi eleito deputado federal utilizando o número 111, em alusão às mortes. Esses fatos confirmam a percepção daqueles que veem no Brasil uma sociedade dividida entre os que apoiam a tortura e as violações de direitos humanos, especialmente contra populações vulneráveis, os que são indiferentes, e os que lutam para que essas violações nunca mais aconteçam.

O Massacre do Carandiru acelerou a reação de lideranças entre os presos, que passaram a se articular para fazer frente às constantes investidas violentas da polícia. Em 1993, algumas dessas lideranças formaram um grupo denominado Primeiro Comando da Capital (PCC), que se consolidou ao longo dos anos e expandiu sua influência sobre a massa prisional. Em 2001, mostrou sua força pela primeira vez ao coordenar uma rebelião simultânea em 29 unidades prisionais de São Paulo. Em maio de 2006, o evento se repetiu de forma mais intensa: 74 unidades prisionais entraram em rebelião simultaneamente, resultando na morte de vários presos e de mais de 30 agentes públicos, entre agentes penitenciários e policiais.

A reação da polícia nos dias seguintes foi aterradora. Sem preparo algum e agindo com irracionalidade, os policiais saíram às ruas executando centenas de jovens na periferia. Foram mais de 500 mortos. As mães que perderam seus filhos iniciaram um movimento, nomeado de Mães de Maio, em referência ao movimento com a mesma denominação na Argentina, formado por mães que perderam seus filhos durante a ditadura civil-militar.

As mortes cometidas pelos policiais, tanto em 1992, quanto em 2006, permanecem impunes. O Ministério Público solicitou arquivamento de praticamente todos os casos de 2006, e somente um policial foi condenado até hoje. O movimento “Mães de Maio” segue em sua luta contra a impunidade.

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