Uma polícia cidadã e desmilitarizada
A atuação violenta da polícia brasileira, que envolve principalmente o assassinato de jovens negros e pobres, é um fato incontestável. Diante desse quadro, é consenso entre aqueles que querem reformas nas polícias que a formação, o treinamento dos policiais e as formas de fiscalização sobre a polícia precisam ser repensados urgentemente. O ideal é de que as forças policiais vejam os destinatários dos serviços de segurança pública como cidadãos, independentemente de cor, sexo ou condição econômica. Porém, é necessário abandonar a doutrina militarizada e o tratamento estereotipado das polícias, que dividem a população de forma binária entre “bandidos” e “cidadãos de bem”; “inimigos” e “aliados”. Neste novo modelo, a segurança pública seria sinônimo de prevenção e não de confronto com as pessoas. Também neste modelo, não haveria uma polícia militarizada em contato direto com a população.
Por isso, é de suma importância que se repense a polícia desde o início da formação policial, no sentido de evitar que estes agentes públicos cometam violências ou abusos na atividade de controle do crime. É mais do que necessário que as polícias recebam uma instrução especializada, voltada para temas como: relações raciais, direitos sociais e políticos de populações minoritárias, igualdade de gênero, respeito às populações LGBT+.
A polícia precisa ter uma formação ampliada, contínua e que vise a defesa dos Direitos Humanos, não se restringindo ao período em que policiais estão dentro das academias de polícia. No entanto, também é importante lembrar que só é possível haver uma polícia realmente cidadã e democrática se os policiais tiverem garantidos seus direitos, condições de trabalho e salários dignos.
Para que as polícias brasileiras se aproximem do modelo democrático de atuação, é necessário que ocorra um controle maior sobre estas instituições. Por mais que já existam alguns órgãos encarregados de tal incumbência, o que se observa é que estas instituições fiscalizadoras acabam endossando o modelo de atuação das polícias, marcado por violência e arbitrariedade.
Os órgãos de controle das polícias
As Corregedorias são órgãos de controle interno das polícias, responsáveis por apurar crimes e infrações administrativas cometidas por policiais. De forma geral, os órgãos de correção policial investigam as denúncias contra policiais, feitas por vítimas, testemunhas, comandantes, delegados, ou aquelas que são registradas nos Disque-Denúncia. Eles devem averiguar, igualmente, as denúncias encaminhadas ao Ministério Público ou à Ouvidoria de Polícia. Tais denúncias podem ser relativas a infrações administrativas e disciplinares ou a delitos criminais. Após verificação preliminar, geralmente sigilosa, sobre a fundamentação da denúncia, pode ser instaurada uma sindicância – no caso de infrações administrativas e disciplinares – ou aberto um inquérito policial, quando se trata de conduta criminal.
A maior parte das denúncias é encaminhada pelas Corregedorias às unidades em que trabalham os policiais acusados. Depois de serem investigadas, elas retornam à Corregedoria, que analisará os resultados do procedimento. As penalidades aos policiais denunciados podem ser aplicadas concomitantes na esfera administrativa, disciplinar e criminal, sendo as duas primeiras atribuições da própria unidade policial, e a última de competência da Justiça comum ou militar.
As Corregedorias dispõem de poucos recursos materiais, pessoal qualificado e autonomia para investigar denúncias contra os membros da própria polícia. Por este motivo, as propostas relacionadas à reforma das instituições policiais sugerem que instituições externas façam o controle da atividade policial, por exemplo, as Ouvidorias e o Ministério Público.
Segundo a Constituição Federal, dentre as atribuições do Ministério Público (MP) está a incumbência de realizar o controle externo da atividade policial, monitorando todos os estágios do trabalho policial, realizando o exame das investigações, assim como a denúncia de crimes e violações dos direitos dos cidadãos. Este órgão conta com estrutura funcional própria, além disso, não está subordinado ao Executivo e nem ao Judiciário. Por ser incumbido de tarefas reativas (como o encaminhamento judicial de denúncias), e proativas (como o acompanhamento e a avaliação permanente da atividade policial) o Ministério Público constitui o órgão mais importante de controle externo da polícia legalmente previsto no Brasil.
Contudo, o que se percebe é que o Ministério Público não consegue exercer o seu papel no controle externo da atividade policial e no combate à violação de direitos humanos. Essa dificuldade deve-se, especialmente, a dois problemas que são apontados em relatório produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2015. Segundo o Instituto, entre as principais fontes desta limitação está, em primeiro lugar, o fato de que os promotores se limitam à revisão técnica das evidências apresentadas nos inquéritos, não fiscalizando outras etapas do trabalho policial. O segundo aspecto é a hostilidade das polícias ao controle externo exercido por instituições não policiais. Este problema é agravado por alegações de afronta à autoridade policial, que são garantidas pelo Código de Processo Penal, quando o MP realiza investigações de crimes cometidos por policiais, independentemente da atuação das Corregedorias.
Existem, ainda, as Ouvidorias de Polícia, criadas em diversos estados brasileiros ao longo dos anos 1990. As Ouvidorias são mecanismos de controle externo das organizações policiais que assumiram em parte tais atribuições do MP. Entretanto, existem igualmente algumas dificuldades na atuação das Ouvidorias: as propostas de reforma da segurança pública têm apontado, por exemplo, que as ouvidorias brasileiras ainda se limitam ao trabalho de identificar e punir individualmente os crimes e abusos cometidos pelos agentes policiais, quando seria imprescindível que se envolvessem também no monitoramento mais amplo das instituições policiais e na formulação de soluções para seus problemas estruturais.
Muitas das propostas de reforma do campo da segurança pública no Brasil insistem no argumento de que as alterações na segurança pública não devem se restringir à ação de colocar mais policiais nas ruas. Para se promover segurança é necessário pensar neste campo enquanto uma política pública, como ocorre com a Educação e a Saúde, por exemplo. Por isso, na segurança pública deve-se primar pela participação da sociedade civil e pela articulação desse campo com outras instâncias da gestão municipal (saúde, educação, esportes).
No entanto, é um grande desafio aos gestores do Brasil investir em políticas públicas para o campo da segurança com participação social. O desafio consiste em adequar a medida que o governo necessita se valer de forças repressivas, como a polícia, na segurança pública, mas equilibrando a sua atuação com um modelo cidadão de igualdade de direito na administração da justiça e na punição.
Reformas no ciclo da Polícia
A Constituição brasileira estabeleceu que nas unidades da federação, o ciclo do trabalho policial seja dividido entre a PM e a Polícia Civil, com a última sendo responsável pela investigação dos crimes, análise de provas periciais, só entrando “em ação” após o cometimento dos crimes, entre outras funções. Por sua vez, a outra corporação policial tem caráter militar e é responsável pelo chamado “policiamento ostensivo”. Suas incumbências são prevenir a ocorrência de crimes por meio da presença física de policiais fardados.
Este modelo de organização é pouco frequente em outros países. Comumente, predomina a constituição de corpos policiais que realizam o ciclo completo (policiamento ostensivo, investigativo e processamento criminal), ou existem divisões policiais com atribuições definidas, segundo o tipo de modalidade criminal ou a área de atuação.
As principais críticas ao modelo de polícia brasileiro dizem respeito a uma ruptura no fluxo de informações entre uma instituição que está permanentemente nas ruas – mas que é vedada de investigar – e outra que é responsável pela investigação dos crimes já cometidos, mas que não pode orientar ações preventivas contra crimes futuros. Esses problemas são agravados pelas rivalidades intensas entre as duas corporações policiais, que prejudicam o compartilhamento de informações e trabalho de forma articulada.
Em relação a estes aspectos, a principal iniciativa de reforma está na proposta de que cada instituição policial seja responsável pelo ciclo completo de sua atividade. Além disso, a competência de cada polícia será redefinida por critérios territoriais, ou por especialização criminal, conforme decisão de cada estado. Contudo, não há consenso sobre qual reforma é desejável, havendo argumentos bastante contundentes tanto a favor quanto contra a instituição do ciclo completo no Brasil.